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sábado, 12 de outubro de 2019

Poulantzas e o direito



Por Welliton Resende

A concepção jurídico-positiva do Estado burguês, que toma o direito como limitador do exercício do poder, sofre críticas porquanto desconsidera o papel da lei como instrumento de dominação e sua função na organização da violência pública. Consoante Marx e Weber, em toda manifestação histórica de centralização do poder social, este, a despeito de ilimitado, era fundamentado na lei e no direito. Assim, consideram os autores falaciosa a afirmação de que o Estado de direito caminha em sentido oposto ao curso da violência.

Nicos Poulantzas, conceituado filósofo e sociólogo grego, no trabalho O Estado, O Poder, O SocialismoA Lei, apresenta específica visão do fenômeno jurídico, em análise crítica da postura que toma o direito em face do sistema capitalista. Considera que a lei, longe de constituir conceito antagônico à violência, é parte integrante da ordem repressiva e da organização da coação, exercida por todo o Estado. Diferentemente da corrente prevalecente na filosofia do poder, da qual se aproxima Foucault, entende Poulantzas que o Estado não se vale exclusivamente de uma repressão ideológica, simbólica, pautada em um "consenso" entre dominante e dominado, que se processa no interior do indivíduo, mas que se utiliza de efetiva violência física, manifestada na forma determinada pela lei.

A ideologia dominante, que o Estado reproduz e inculca, tem igualmente por função constituir o cimento interno dos aparelhos de Estado e da unidade de seu pessoal. Esta ideologia é precisamente a do Estado neutro, representante da vontade e dos interesses gerais, árbitro entre as classes em luta [...] (Poulantzas, 1985, p. 179).

Demonstra o autor que, se o consenso fosse perfeito, não haveria "lutas" ou conflitos pelo direito e poder. Essa parcela de dissenso exige a intervenção efetiva do Estado por meio da repressão física.
O uso efetivo da violência se mostra de modo acentuado no Estado capitalista, considerado mais agressivo que os precedentes, na medida em que é o primeiro a deter o monopólio da violência legítima. Fundado em uma legitimidade racional-legal, o denominado "Estado de direito" acumula, como nenhum outro, grande quantidade de meios de coação corporal, concentrando a força organizada.

Poulantzas afirma que é possível constatar a especificidade do Estado capitalista a partir do direito por ele produzido. A noção de sistema axiomatizado, composto por normas abstratas e gerais, formais e estritamente regulamentadas é tipicamente capitalista. A abstração, universalidade e formalidade do direito capitalista encobre a monopolização da violência legítima pelo Estado, opondo-se ao particularismo jurídico revelador das diferenças intersubjetivas. A formalidade e abstração da lei, assim, mostram-se em relação primeira com os fracionamentos reais do corpo social, à luz da individualização dos agentes no processo de trabalho capitalista.

Atuando de forma tanto negativa quanto positiva, a lei funciona, nesse contexto, como organizador da repressão, da violência física organizada. Tendo em vista os "conflitos" persistentes no corpo social, necessário se faz à lei comungar com a aplicação efetiva da coação física. O direito, assim, não intervém contra a violência ou o terror. Funciona como organizador do exercício da violência.


Referência:
POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

A crítica à burocracia de Maurício Tragtenberg



Por Welliton Resende

A opção epistemiológica pelo método marxiano pressupõe a utlização de três movimentos simultâneos: crítica, construção do novo conhecimento e ação com vistas à transformação da realidade. Nessa perspectiva dialética, a análise empreendida por Maurício Tragtenberg, busca identificar especificidades históricas, a partir do aprofundamento e generalização da burocracia na sociedade moderna, capitalista.

Para Tragtenberg, a administração entendida enquanto organização formal burocrática se encontra plenamente realizada no Estado; isso equivale dizer que ela surge em formações sociais pré-capitalistas, séculos antes de sua aparição nas grandes empresas privadas. Cumpre ressaltar que é na fase industrial da sociedade moderna onde surgem as empresas burocratizadas: a ampliação da divisão social do trabalho faz surgir a necessidade de ideologias que justifiquem as relações de  produção burguesas. A chamada Teoria Geral da Administração (originária da obra de Taylor) é um modelo explicativo do início do século XX – passagem do capitalismo liberal ao monopolista – que expõe a emergência da burocracia como poder funcional e político. Contudo, ela já pode ser  encontrada no modo de produção asiático, que englobava todas as antigas sociedades do continente, além do México e Peru pré-coloniais:

A burocracia enquanto classe dominante (detentora dos meios de produção), elemento de mediação com a sociedade global, exercendo o poder político, perfila-os ante a História como uma forma de dominação burocrático-patrimonial ou modo de produção asiático. No modo de produção asiático, o
déspota oriental representa a confluência de um processo social, que se inicia com a burocracia,  surgindo das necessidades técnicas (irrigação de terra arável), finalizando como poder de exploração, efetuando-se assim a transitividade da burocracia cumprindo funções de organização e supervisão
para o monopólio do poder político. (TRAGTENBERG, 2006, p. 30).


Apesar de reconhecer os interesses de classe e a perspectiva burguesa de Hegel, Tragtenberg busca em sua obra uma base analítica para reconhecer a existência da burocracia enquanto poder administrativo e poder político. Nesse processo, já reside de modo implícito sua crítica radical às frações da classe burocrática e ao Estado, seja ele capitalista ou “socialista”:

A burocracia representa no esquema hegeliano certas corporações ou sua combinação. Além de ser um instrumento das classes dominantes, a burocracia tem efeitos de permanência subsistindo com nível relativo de autonomia. Esse nível atualmente é encontrado na burocratização das lideranças sindicais e dos Estados socialistas. A corporação é a burocracia da sociedade civil e do Estado, sua hierarquia de formas, de apresentação. Ela se opõe como sociedade civil ao Estado, ao Estado da sociedade civil, às corporações. O mesmo espírito que na sociedade criou a corporação cria no Estado a burocracia. A burocracia é mesmo uma corporação, aparece como realidade no bonapartismo e na Prússia. No capitalismo de Estado, no regime democrático liberal, aparece como agente da vontade geral, como um universal que encobre determinações privatistas. A burocracia protege uma generalidade imaginária de interesses particulares. As finalidades do Estado são as da burocracia e as finalidades desta tornam-se finalidades do Estado. (TRAGTENBERG, 2006, p. 28).

Aqui, ele enfatiza sua distância e crítica ao modelo weberiano, o qual seria insuficiente para compreender tais sociedades, ao compará-las com o capitalismo privado:

Enquanto Weber, na sua análise da burocracia, preocupa-se com a enumeração de critérios que a constituem, parece-nos fundamental estudá-la em sua dinâmica interna, isto é, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio em torno do qual ela aumenta seu poder. Enquanto
na indústria capitalista a burocracia em Weber define-se como órgão de transmissão, isso não se dá numa estrutura em que um partido único detém o monopólio do poder total, pois o burô político do Partido Comunista da URSS não se reduz à transmissão e execução. O acesso aos cargos do partido
nãodepende de conhecimento técnico ou profissional, não é necessário ser remunerado pelo partido para ter cargo importante. A burocracia participando da apropriação da mais-valia participado sistema de dominação. (TRAGTENBERG, 2006, p. 235-236).

Para o sociólogo brasileiro, há como conter o irrefreável e quase indestrutível domínio da classe burguesa e sua forma de organização: a alternativa estaria no processo de autonomização das classes e grupos sociais explorados e oprimidos, os quais em seu processo de luta esboçam novas e superiores relações sociais no combate encarniçado ao capitalismo e suas instituições.

A homologia casual entre burocracia weberiana e transparência pública



Por Welliton Resende*

Diametralmente oposto ao conceito popular, a burocracia é visualizada geralmente como uma organização onde o papelório se multiplica e se avoluma, impedindo as soluções rápidas ou eficientes, o apego exacerbado e procrastinador de funcionários a rotinas e normas, causando ineficiência à organização. O leigo passou a denominar burocracia aos defeitos do sistema (disfunções) e não ao sistema em si mesmo.

O conceito de burocracia para Max Weber é exatamente o contrário. A burocracia é a organização eficiente por excelência. E para conseguir essa eficiência, a burocracia precisa detalhar antecipadamente e nos mínimos detalhes como as coisas deverão ser feitas.

Segundo Marx Weber, a burocracia tem as seguintes características principais:
1.Caráter legal das normas e regulamentos;
2.Caráter formal das comunicações;
3.Caráter racional e divisão do trabalho;
4.Impessoalidade nas relações;
5.Hierarquia de autoridade;
6.Rotinas e procedimentos estandartizados;
7.Competência técnica  e meritocracia;
8.Especialização da administração que é separada da propriedade;
9.Profissionalização dos participantes;e,
10.Completa previsibilidade do funcionamento.

Do exame às características da burocracia, constata-se que a transparência é meio e fim de pelo menos três: caráter legal das normas e regulamentos,  caráter formal das comunicações e completa previsibilidade do seu funcionamento. A transparência, enquanto princípio normativo, é uma atividade administrativa cujo efeito líquido tem dois propósitos principais: a)proporcionar informação e compreensão necessárias para que os diversos atores possam se conduzir; e, b)proporcionar atitudes necessárias que promovam a motivação, cooperação e satisfação desses atores.

No que concerne ao caráter legal, em um estado democrático como o Brasil, é direito do cidadão conhecer o caminho que trilhou o dinheiro dos seus impostos. A clareza na gestão é  dever da Administração, principalmente depois da publicação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2011. No entanto, é rasa a visão de quem pensa que a transparência pública é novidade no país. A Constituição Federal de 1988, por exemplo,  já colocava o direito de acesso aos dados públicos como um dos direitos fundamentais dos cidadãos. Depois dela foram publicados vários decretos, leis e portarias que tratavam sobre o tema: o rito processual do habeas data, a  Lei que instituiu os pregões presencial e eletrônico, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Lei de Conflito de Interesses, entre outros. Conforme Chiavenato (1993):

A burocracia é uma organização ligada por normas e regulamentos previamente estabelecidos por escrito. Em outros termos, é uma organização baseada em uma espécie de legislação própria (Como a Constituição Federal, a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do Município) que define antecipadamente como a organização burocrática deverá funcionar. Essas normas e regulamentos são escritos. Também são exaustivos porque procuram cobrir todas as áreas da gestão, prever todas as ocorrências e enquadrá-las dentro de um esquema previamente definido capaz de regular tudo que ocorra dentro da gestão. As normas e regulamentos são racionais porque são coerentes com os objetivos visados. Nesse sentido, a burocracia é uma estrutura social racionalmente organizada. As normas e regulamentos são legais porque conferem às pessoas investidas da autoridade um poder de coação sobre os subordinados e também os meios coercitivos capazes de impor a disciplina. As normas e regulamentos são escritos para assegurar uma interpretação sistemática e unívoca. Desta maneira, economizam-se esforços e possibilitam a padronização dentro da organização (CHIAVENATO,1993, 420).


A transparência pública trata, portanto, do aumento da visibilidade dos gastos efetivados pelo governo com qualidade de informação e em espaço temporal. Esses dados se referem a qualquer informação pública ou sob custódia dos órgãos e entidades da Administração Pública, desde que não sejam sigilosos. Além disso, quando a transparência pública é eficaz a sociedade pode acompanhar os serviços prestados e identificar quando houver fraudes que impeçam o desenvolvimento do país. Portanto, se coaduna intrinsecamente com os princípios do caráter formal das comunicações e da completa previsibilidade do seu funcionamento:

A burocracia é uma organização ligada por comunicações escritas. As regras, decisões e ações administrativas são formuladas e registradas por escrito. Daí o caráter formal da burocracia: todas as ações e procedimentos são feitos para proporcionar comprovação e documentação adequadas. Além disso, a interpretação unívoca das comunicações também é assegurada. Como muitas vezes certos tipos de comunicações são feitos reiterada e constantemente , a burocracia lança mão de rotinas e de formulários para facilitar as comunicações e para rotinizar o preenchimento de sua formalização (CHIAVENATO, 1993, 420).

A consequência desejada da burocracia é a previsibilidade do comportamento dos seus membros. O modelo burocrático de Weber parte da pressuposição de que o comportamento dos membros da organização é perfeitamente previsível: todos os funcionários deverão comporta-se de acordo com as normas e regulamentos da organização, a fim de que esta atinja a máxima eficiência possível. Tudo na burocracia é estabelecida no sentido de prever antecipadamente todas as ocorrências e rotinizar sua execução, para que a máxima eficiência do sistema seja plenamente alcançada (CHIAVENATO, 1993,425).

Por fim, pode-se concluir que há uma inequívoca homologia casual entre a burocracia weberiana e o princípio da transparência pública.



Resende é auditor federal e mestrando em Desenvolvimento Regional. Interaja com ele no insta: @welliton.resende