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sábado, 12 de outubro de 2019

A crítica à burocracia de Maurício Tragtenberg



Por Welliton Resende

A opção epistemiológica pelo método marxiano pressupõe a utlização de três movimentos simultâneos: crítica, construção do novo conhecimento e ação com vistas à transformação da realidade. Nessa perspectiva dialética, a análise empreendida por Maurício Tragtenberg, busca identificar especificidades históricas, a partir do aprofundamento e generalização da burocracia na sociedade moderna, capitalista.

Para Tragtenberg, a administração entendida enquanto organização formal burocrática se encontra plenamente realizada no Estado; isso equivale dizer que ela surge em formações sociais pré-capitalistas, séculos antes de sua aparição nas grandes empresas privadas. Cumpre ressaltar que é na fase industrial da sociedade moderna onde surgem as empresas burocratizadas: a ampliação da divisão social do trabalho faz surgir a necessidade de ideologias que justifiquem as relações de  produção burguesas. A chamada Teoria Geral da Administração (originária da obra de Taylor) é um modelo explicativo do início do século XX – passagem do capitalismo liberal ao monopolista – que expõe a emergência da burocracia como poder funcional e político. Contudo, ela já pode ser  encontrada no modo de produção asiático, que englobava todas as antigas sociedades do continente, além do México e Peru pré-coloniais:

A burocracia enquanto classe dominante (detentora dos meios de produção), elemento de mediação com a sociedade global, exercendo o poder político, perfila-os ante a História como uma forma de dominação burocrático-patrimonial ou modo de produção asiático. No modo de produção asiático, o
déspota oriental representa a confluência de um processo social, que se inicia com a burocracia,  surgindo das necessidades técnicas (irrigação de terra arável), finalizando como poder de exploração, efetuando-se assim a transitividade da burocracia cumprindo funções de organização e supervisão
para o monopólio do poder político. (TRAGTENBERG, 2006, p. 30).


Apesar de reconhecer os interesses de classe e a perspectiva burguesa de Hegel, Tragtenberg busca em sua obra uma base analítica para reconhecer a existência da burocracia enquanto poder administrativo e poder político. Nesse processo, já reside de modo implícito sua crítica radical às frações da classe burocrática e ao Estado, seja ele capitalista ou “socialista”:

A burocracia representa no esquema hegeliano certas corporações ou sua combinação. Além de ser um instrumento das classes dominantes, a burocracia tem efeitos de permanência subsistindo com nível relativo de autonomia. Esse nível atualmente é encontrado na burocratização das lideranças sindicais e dos Estados socialistas. A corporação é a burocracia da sociedade civil e do Estado, sua hierarquia de formas, de apresentação. Ela se opõe como sociedade civil ao Estado, ao Estado da sociedade civil, às corporações. O mesmo espírito que na sociedade criou a corporação cria no Estado a burocracia. A burocracia é mesmo uma corporação, aparece como realidade no bonapartismo e na Prússia. No capitalismo de Estado, no regime democrático liberal, aparece como agente da vontade geral, como um universal que encobre determinações privatistas. A burocracia protege uma generalidade imaginária de interesses particulares. As finalidades do Estado são as da burocracia e as finalidades desta tornam-se finalidades do Estado. (TRAGTENBERG, 2006, p. 28).

Aqui, ele enfatiza sua distância e crítica ao modelo weberiano, o qual seria insuficiente para compreender tais sociedades, ao compará-las com o capitalismo privado:

Enquanto Weber, na sua análise da burocracia, preocupa-se com a enumeração de critérios que a constituem, parece-nos fundamental estudá-la em sua dinâmica interna, isto é, a maneira pela qual ela estrutura suas raízes na sociedade e o princípio em torno do qual ela aumenta seu poder. Enquanto
na indústria capitalista a burocracia em Weber define-se como órgão de transmissão, isso não se dá numa estrutura em que um partido único detém o monopólio do poder total, pois o burô político do Partido Comunista da URSS não se reduz à transmissão e execução. O acesso aos cargos do partido
nãodepende de conhecimento técnico ou profissional, não é necessário ser remunerado pelo partido para ter cargo importante. A burocracia participando da apropriação da mais-valia participado sistema de dominação. (TRAGTENBERG, 2006, p. 235-236).

Para o sociólogo brasileiro, há como conter o irrefreável e quase indestrutível domínio da classe burguesa e sua forma de organização: a alternativa estaria no processo de autonomização das classes e grupos sociais explorados e oprimidos, os quais em seu processo de luta esboçam novas e superiores relações sociais no combate encarniçado ao capitalismo e suas instituições.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O aparelho do Estado como burocracia



Por Welliton Resende

A burocracia é uma forma de organização humana que se baseia na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, afim de garantir a máxima eficiência possível no alcance desses objetivos. As origens da burocracia como forma de organização humana- remontam à época da Antiguidade (CHIAVENATO, 1993, p. 412).

Karl Marx estuda o surgimento da burocracia como forma de dominação estatal na antiga Mesopotâmia, China, Índia, Império Inca, Antigo Egito e Rússia. A burocracia emerge como mediação entre os interesses particulares e gerais em função do modo de produção asiático para explorar as obras hidráulicas de irrigação do solo, coordenando os esforços da sociedade de então e posteriormente explorando as comunidades subordinadas através da apropriação da terra pelo Estado e da posse do excedente econômico. O modo de produção asiático caracterizou-se pela intervenção do Estado na economia, tendo como base a burocracia. Seja ao nível estatal ou de cooperação privada, a burocracia mantinha sob sua tutela  a classe comerciante, a campesina e a aristocracia territorial, que dependiam dela para manter as obras hidráulicas e a nomeação para a administração pública.

Contudo, a burocracia- tal como ela existe hoje, como a base do moderno sistema de reprodução - teve sua origem nas mudanças religiosas verificadas após o Renascimento. Weber salienta que o sistema moderno de produção, eminentemente racional e capitalista, não se originou das mudanças tecnológicas nem das relações de propriedade , como afirmava Marx, mas de um novo conjunto de normas sociais morais, às quais denominou de "ética protestante": o trabalho duro e árduo como dádiva de Deus, a poupança e o asceticismo que proporcionaram a replicação das rendas excedentes, uma vez que seu dispêndio e consumo em símbolos materiais e improdutivos de vaidade e prestígio eram proibidos.

Verificou-se que o capitalismo, a burocracia (como forma de organização) e a ciência moderna constituem três formas de racionalidade que surgiram a partir dessas mudanças religiosas ocorridas inicialmente nos países protestantes- como a Inglaterra e a Holanda- e não em países católicos. As semelhanças entre o protestante ( principalmente o calvinista) e o comportamento capitalista são impressionantes, afirmou Chiavenato (1993).

Para Weber (1998), a burocracia só se consuma quando recebe a legitimidade dos subordinados e a partir daí passa a funcionar como administração. Nesta perspectiva, Weber vê a burocracia como forma de dominação. Na verdade, na vida cotidiana, dominação é, em primeiro lugar, administração. A presença do quadro administrativo é o instrumento da instalação do poder, pois uma dominação de uma pluralidade de pessoas requer um quadro administrativo, que garanta a execução de ordens gerais.

Por sua vez, a legitimidade de uma dominação implica obediência à ordem recebida, como se tivesse feito do conteúdo da ordem, a máxima de sua conduta sem levar em conta a opinião própria sobre o valor ou desvalor desta ordem. Afirma Weber (1998, p. 138) que: Todas as dominações procuram despertar e cultivar a crença em sua legitimidade. Dependendo da natureza da legitimidade pretendida difere o tipo de obediência e do quadro administrativo, destinado a garanti-la, bem como o caráter do exercício da dominação.

Entre os diferentes tipos de dominação estudados por Weber, a burocracia se insere na dominação legal-burocrática. Essa dominação possui um caráter racional, fundamentado na crença da validade dos regulamentos estabelecidos racionalmente e na legalidade dos chefes designados nos termos da lei. Assim a relação entre dominantes e dominados se estabelece, não por vontade própria, mas por estar previsto, em estatuto, que determina quem deve mandar e quem deve obedecer. Quem manda, assim o faz para obedecer ao estatuído.

O dominante, que está apenas exercendo uma função como dever objetivo do cargo que ocupa, deve agir impessoalmente, sem interferência subjetiva, sem consideração a pessoas, sem influência de qualquer espécie. Deve agir de maneira estritamente formal, segundo regras racionais. Para Max Weber (1995, p. 350) o dever de obediência está graduado numa hierarquia de quadros com subordinação dos inferiores aos superiores e prevê um direito de queixa que é regulamentado. A base do funcionamento técnico é a disciplina, ou seja, cada um no seu posto exercendo uma função.

As ordens serão legítimas quando não se ultrapassar a ordem jurídica impessoal da qual ele recebe o seu poder de comando e a obediência se deve somente aos limites fixados nesta mesma ordem. Assim há, na dominação burocrática, a estratificação dos estratos em grande complexidade, marcada pelo princípio de “dividir para reinar”. Há na administração burocrática um processo de nivelamento de dominantes e dominados porque, na verdade, todos obedecem a um estatuto previamente estabelecido. As classes laboriosas e as classes dirigentes são apenas variantes do cidadão - a dominação fica dissimulada e esta planificação surge como instrumento para exercer o poder e justificar seu exercício.

É uma forma sutil e perfeita pela qual o autoritarismo se impõe no mundo capitalista. Na forma burocrática de administrar aplica-se o princípio absoluto da separação entre o quadro administrativo e os meios de administração e produção. Substitui-se assim o governo das pessoas pela administração das coisas e a racionalidade que a governa faz surgir a crença de uma razão inscrita nas próprias coisas, na medida em que esta razão estabelece uma sociedade inteligível de ponta a ponta. As idéias de organização, controle, administração e planificação transformam o universal abstrato em ação adequada a fins.

A burocracia não é um aparelho qualquer à disposição de dirigentes políticos; é um aparelho centralizado. A centralização diz respeito tanto ao recrutamento quanto a administração de um pessoal colocado sob a autoridade se não das mesmas regras, pelo menos de regras que dependem dos mesmos princípios. E por ser centralizada é que este tipo de administração tende a uma codificação mais ou menos rigorosa que procura dar coerência a uma massa de leis, decretos, regulamentos prolíficos e confusos.Administrar/dominar via burocracia é estabelecer obediência por meio de um quadro administrativo: cria-se uma infinidade de direitos e deveres, instala-se uma hierarquia entre o séquito e este corpo administrativo.

E isto possibilita a estabilidade da dominação. Neste sentido, vemos que Weber estabeleceu as estratégias usadas pelos dominantes para assegurar a dominação e fazer com que os dominados aceitem-na. A burocracia é um fenômeno básico da modernidade. Este instrumental liga-se ao processo de racionalização que marca as estruturas capitalistas a partir da constituição de empresas de caráter racional. Ainda no dizer de Weber (1998) o que em definitivo criou o capitalismo foi uma concepção racional que invadiu a empresa, a contabilidade, o direito, a economia, a vida enfim.

A burocracia, então, pode ser definida da seguinte forma: aparato técnico-administrativo, formado por profissionais especializados, selecionados segundo critérios racionais e que se encarregavam de diversas tarefas importantes dentro do sistema. A análise de Weber também aponta que a burocracia, existiu em todas as formas de Estado, desde o antigo até o moderno. Contudo, foi no contexto do Estado moderno e da ordem legal que a burocracia atingiu seu mais alto grau de racionalidade.

SegundoWeber, as principais características de um aparato burocrático moderno são:

Funcionários que ocupam cargos burocráticos são considerados servidores públicos;

Funcionários são contratados em virtude competência técnica e qualificações específicas;

Funcionários cumprem tarefas que são determinadas por normas e regulamentos escritos;

A remuneração é baseada em salários estipulados em dinheiro;e,

Funcionários estão sujeitos a regras hierárquicas e códigos disciplinares que estabelecem as relações de autoridade.


No decorrer dos anos, e principalmente após a eclosão de duas guerras mundiais no Século XX, o Estado se viu na obrigação de reerguer-se política, econômica e socialmente. Nesse momento, surgiu o Estado Social atrelado a políticas Keynesianas, que tinha como deveres, além dos já consagrados no período liberal, educação, moradia, saúde etc. À medida que o Estado foi assumindo maiores obrigações,naturalmente foi crescendo o número de pessoas que realizam seu trabalho. Este era o Estado burocrático.

Segundo o pensamento de autores alinhados com o pensamento de de que a economia e o mercado tinham suas próprias regras, o gigantismo estatal causou a inflação e tantos outros males, como o favorecimento de empresas privadas com recursos públicos. Este é o pensamento é do neo-liberalismo , iniciado com Hayek, na Suíça, no ano de 1947 e que passou a predominar no cenário global com a ascensão ao poder de Margareth Tatcher, na Inglaterra  (1979) e de Ronald Reagan, nos EUA (1980).

Com o passar dos anos, este pensamento foi tomando conta do panorama mundial e, após a queda do muro de Berlim e o Consenso de Washington, no ano de 1991, passou a prevalecer em vários países da Europa e das Américas. A partir de então, a concepção de Estado foi sendo alterada pera o modelo gerencial.  Para Salvador (2010) o estado capitalista representa a condensação da luta de classes presente na sociedade civil burguesa. O Estado, nesta lógica,  resguarda a contradição fundamental da ordem do capital: a apropriação privada da riqueza social a partir da exploração da força de trabalho.  

No modo de produção capitalista o Estado também é capitalista e, por isso, tem como função garantir as condições de reprodução do capital. A grande "invenção brasileira" foi combinar os elementos da burocracia (que seminalmente objetiva combater a corrupção e o nepotismo) com o patrimonialismo ( a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado). São frequentes episódios de corrupção, especialmente os de desvio de verbas públicas que poderiam ser destinadas ao financiamento de direitos básicos, implantação de políticas públicas ou de programas sociais.