Etnografia: estudo descritivo das diversas etnias, de suas características antropológicas, sociais etc |
Por Marise Nogueira Ramos
Telmo H. Caria |
Nossa proposta reafirma categorias fundamentais do
materialismo histórico-dialético – totalidade,
historicidade e contradição – como referência epistemológica, pois o
propósito de penetrar em planos ainda pouco investigados na área Trabalho e
Educação e em seu recorte da Educação Profissional não se limita a descrever
singularidades do comportamento humano ou particularidades de grupos sociais.
Ao contrário, pensamos que a apreensão dos saberes de grupos profissionais pode
nos ajudar a compreender dinâmicas e processos pelos quais os trabalhadores se
afirmam como sujeitos das relações sociais de produção e, assim, resistem e
elaboram formas de enfrentamento à dominação. Entendemos que a compreensão dos processos sociais não
pode prescindir do estudo da experiência humana (THOMPSON, 1981).
Uma primeira
contradição que surge na apropriação dessa perspectiva teórico-metodológica
está em que a maioria das pesquisas considera profissões as atividades que
exigem formação em nível superior (CARIA, 2010, p. 2). Em nossos estudos, o
que definimos como atividades profissionais são aquelas que tenham algum
conhecimento científico como base, a serem aprendidos na educação formal, seja
esta de nível superior ou médio.
É nesse segundo nível
que se encontram os nossos sujeitos de pesquisa. Esses têm, pelo menos, as
seguintes características. Primeiramente, sua formação não ocorre em nível
superior, mas no ensino médio ou após este, mediante uma formação
técnicoprofissionalizante.
Em segundo lugar registra-se o fato de que muitos
desses trabalhadores obtiveram antes a experiência prática no trabalho para,
depois, realizarem a formação técnica. Eles desenvolvem seu trabalho com baixa autonomia e elevada subordinação ao
profissional de nível superior, ainda que diferentes níveis de autonomia
possam ser encontrados.
Dessa forma, esses trabalhadores possuem baixo poder social e simbólico. Suas
atividades têm por base o conhecimento científico que orienta procedimentos
técnicos, mas o acesso a esse conhecimento de forma sistematizada foi
delimitado pelo nível de ensino exigido, de modo que os conteúdos
selecionados pelas escolas que os formam tendem a ser restritos àqueles
considerados necessários a orientar bons procedimentos práticos (RAMOS,
2010).
Suas interações na
atividade profissional são, muitas vezes, restritas a um profissional de
nível superior e ao usuário do serviço. Mesmo com essa configuração, o conhecimento
científico está presente na atividade de trabalho, seja explícita ou
implicitamente; e os trabalhadores fazem algum uso deles. Tais usos sofrem
influência de algumas determinações estruturais, tais como as condições de
classe, as políticas de educação e as de educação profissional; e de relações
de poder instauradas entre subalternos e superiores e entre pares de um mesmo
contexto profissional.
Por essas razões, nos autorizamos a considerar tais
trabalhadores como profissionais, devido ao pressuposto de que utilizam (algum)
conhecimento científico no seu trabalho e que este se realiza em relação direta
com usuários em espaços e tempos delimitados. A abrangência e a
complexidade do conhecimento utilizado são definidas face ao lugar que ocupam
na divisão social do trabalho.
CONCEITUANDO O SABER
PROFISSIONAL
O esforço que nos levou
a este ensaio foi o de articular um referencial teórico para a análise
sociológica do conhecimento e dos saberes profissionais. Primeiramente, deve-se
dizer que o conceito de saber
profissional pressupõe o conhecimento em uso, e não somente enunciado.
Nesse sentido, ele não se confunde nem com o conhecimento científico
resultado de investigações e apreensões da realidade pelo trabalho de pesquisa,
nem com os recortes e apropriações aplicadas deste último na forma de conhecimento
técnico e tecnológico ou, ainda, com enunciados de ordem filosófica,
jurídica ou equivalentes2.
É verdade que as profissões têm como fundamento e delimitação
os conhecimentos científico, tecnológico, filosófico e jurídico voltados para a
explicação de fenômenos, para a criação e o desenvolvimento de processos e
produtos, para a resolução de problemas, e para a regulação da prática social,
nas diversas áreas em que a sociedade situa e organiza historicamente suas
necessidades e produções.
Mas o enunciado ou a proposição desses conhecimentos não
se tornam saberes profissionais imediatamente. O saber profissional é,
essencialmente, o conhecimento em uso pelos sujeitos em interação, guiados por
alguma motivação. Assim, o
conhecimento científico não é o saber profissional, mas sim uma de suas fontes.
A outra é a experiência
prática dos sujeitos em interação social. Portanto, o saber profissional é produto de uma dualidade
epistemológica – a
ciência e a prática – e também de uma dualidade sociocognitiva
representada pelas mentes
pragmática e analítica (EVANS, 2008; 2009).
Por essas razões, o saber
profissional não constitui uma epistemologia, como, por exemplo, a da
prática, posto não ser possível adotar-se um único critério para a sua
validação, seja a eficácia, seja a coerência. O que o caracteriza é exatamente
uma combinação variável desses critérios, muitas vezes defasados um do outro na
realização da ação, mas compartilhada pelo grupo profissional, na forma muito
mais de uma cultura do que de uma epistemologia.
Enunciamos aqui uma
discordância da abordagem de Tardif (2000), para quem a epistemologia da
prática profissional é o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente
pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas
as suas tarefas.
Da mesma forma que não consideramos que os saberes
profissionais formam uma epistemologia e sim uma cultura, entendemos que a construção
dos saberes profissionais como objeto das Ciências Sociais não funda uma
epistemologia específica; antes, essa construção busca na interdisciplinaridade
uma perspectiva de análise.
Ao identificarmos essas
dualidades, interessa-nos saber se as experiências podem ser reforçadoras de
condutas pragmático-utilitárias ou podem oportunizar uma articulação dialética
entre teoria e prática que proporcione a análise e a deliberação conscientes na
prática social.
Tratar-se-ia, nesse caso, de vislumbrar a realização da
possibilidade ontológica da práxis. Não negamos a especificidade pragmática
do trabalho profissional, pois ele visa a resultados que não advêm somente
do conhecimento científico que fundamenta e delimita a profissão.
Mas também não se reduz
a automatismos cognitivos gerados e consolidados na experiência. O trabalho, e consequentemente o saber profissional, é um processo de
transformação prática do conhecimento científico em que os critérios de
coerência e eficácia assumem uma tensa relação mediada pela experiência e pela reflexividade
profissional visando a resultados concretos.
Ao mesmo tempo,
queremos desvincular tal especificidade do critério utilitário que correntes da
epistemologia adotam para “validar” um conhecimento independentemente da
possível coerência com a realidade que este procura conceituar
(pragmáticoutilitário). Portanto, a
especificidade pragmática do trabalho e do saber profissional não é o mesmo que
praticismo ou utilitarismo, ainda que, por várias razões (epistemológicas,
ideológicas, conjunturais, estruturais, etc.), possa ser reduzido a isso.
No plano empírico,
porém, temos que reconhecer a existência
da dualidade dos saberes associada às relações de poder. A possibilidade de
o trabalho profissional ser orientado pela articulação dialética entre teoria e
prática não significa que esta ocorra sempre e necessariamente. Ao contrário, a
história da epistemologia e da teoria social tem demonstrado os obstáculos
sociais e culturais – muitos deles de ordem estrutural – que impedem essa
articulação.
Apesar de essa posição se revelar como um ceticismo no plano
estrutural, no âmbito das culturas profissionais, o autor acima referido toma
resultados de estudos etnográficos realizados com grupos profissionais (FILIPE,
2008; GRANJA, 2008) como base da hipótese sociológica de que a possibilidade de
articulação entre as duas epistemologias e as duas mentes – pragmática e
analítica – se põe em função da relação entre cognição e poder no trabalho
profissional.
Essa hipotética
associação, ao nível micro, permite evidenciar, no estudo dos grupos
profissionais, a autonomia (ou o conflito latente) técnica, política e cultural
do trabalho profissional nos contextos de interação social, em face de
estruturas, instituições ou de outros grupos sociais com maior ou menor poder
simbólico (CARIA, 2011).
É o fato de o trabalho profissional ser contextual e situacional
que faz com as prescrições cognitivas e organizativas sejam específicas a elas.
Por isso, a ação teria pouco a ver com a formação clara e distinta de
representações, cálculos e inferências; ou com deliberações e tomadas
de decisões somente racionais.
O resultado social da
forma situada do conhecimento profissional – a cognição na ação – mediada pela
interação social é o saber profissional: “o incerto, o contingente e o
complexo, que exigem o improviso e a percepção do risco em situação” (CARIA,
2010, p. 9). O saber profissional é a
forma como os membros de um grupo profissional coordenam suas ações em situação
com consciência prática; isto é, com um conhecimento tácito habitualmente
utilizado no desenvolvimento de sequências de conduta (GIDDENS, 2000).
O estudo do saber profissional pode nos levar a
“padrões de organização (em simultâneo práticos e simbólicos)” (CARIA, no
prelo) ou a “padrões de coordenação da ação” dos membros de um grupo
profissional, de modo a produzir
conhecimento científico sobre o conhecimento profissional.
Ao mesmo tempo, se
esse estudo tem como referência as questões de poder que entram em jogo nas
interações, poder-se-á avançar na tese de que as possibilidades de articulação
entre as duas epistemologias – ciência e prática – e as duas mentes – analítica
e pragmática – na constituição do saber profissional dependem da diminuição das
desigualdades de poder entre os sujeitos em interação (entre membros de uma
equipe técnica; entre equipe técnica e outros níveis da organização; entre
sujeitos e estruturas sociais).
ETNOGRAFIA PROFISSIONAL
CRÍTICA: O ESTUDO DE INTERAÇÕES SOCIAIS MEDIADAS POR RELAÇÕES DE PODER
Explicitamos
anteriormente que, no estudo dos saberes profissionais, entendemos a “interação como interpretação de expectativas
mútuas em reciprocidade” (CARIA, 2002, p. 137) mediadas por relações de poder.
Na perspectiva do materialismo histórico-dialético,
entretanto, a articulação entre os níveis microssociais das interações e a
estrutura macrossocial das relações sociais de produção pode ser explicada pela categoria totalidade.
Esta define a realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou
do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente
compreendido.
Acumular todos os fatos não significa conhecer a realidade; e
todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade
(KOSIK, 1976). As situações e os objetos singulares podem ser conhecidos à luz
de conceitos mais gerais ou universais, passando pelo tempo e o espaço onde
ocorrem.
Assim analisados,
constituem-se como particularidades, campo de mediações históricas produzidas
pela ação de sujeitos sociais. As pessoas que compartilham experiências
equivalentes no âmbito de um grupo social tendem a compartilhar um conjunto de conhecimentos
tácitos que mantêm o fluxo da interação. Estas podem ser orientadas pela busca
do consenso, quando se tenta eliminar ou, pelo menos, atenuar as tensões
que surgem da interpretação de expectativas.
Normalmente se evita o
conflito, ainda que sua possibilidade seja também inerente à interação. Porém,
esse fato poderia interromper a interação, contrariando o sentido de sua
existência. Nem o consenso, nem o conflito dão lugar ao “emergente”, isto é,
àquilo que pode ser origem de novos conhecimentos e novas regras.
O emergente
só pode surgir quando as tensões não são eliminadas pelo consenso nem acirradas
ao ponto de fazer irromper o conflito. O emergente tem como pressuposto a
existência de constrangimentos e tensões que potencializam soluções no fluxo da
interação.
Ela corresponde ao improviso, ao situacional, que produz, inicialmente,
aprendizagens implícitas, não representacionais; o tácito coletivo (Collins ,
2010). Porém, elas podem ser organizadas como novas representações,
consolidando-se como conhecimento explícito.
A emergência surge em interações que ocorrem em sistemas abertos,
pois em sistemas fechados não há interesse pelo novo. É necessário que
haja uma relativa, mas não substantiva, desigualdade de poder entre os sujeitos
da interação (nos termos, por exemplo, em que Vygotsky define a zona de
desenvolvimento proximal), de modo que o detentor de mais poder se disponha
a perdê-lo e a submeter-se ao poder do outro.
Essa é a racionalidade
compreensiva. Trata-se de uma oposição, simultaneamente, à violência simbólica de
Pierre Bourdieu e à simples negociação de significados da etnometodologia e do
interacionismo simbólico.
Os grupos profissionais são exemplos da
possibilidade de se criar relações desse tipo, pois se constituem por pessoas
com diferentes trajetórias (que redundam em desigualdade de poder); identidades
próximas (que as colocam em condições de interagirem); e que se dedicam à
troca, cultivando a reflexividade. As
interações realizadas nesses termos são produtoras do senso comum compartilhado
pelo respectivo grupo, e não há, necessariamente, um objetivo explícito ou a
busca de uma solução coletiva a guiar a interação. Assim se conforma a cultura profissional.
Pode-se, entretanto,
passar do fluxo corrente da interação a sistematizações que promovem soluções
coletivas, a exemplo de quando se busca preservar a identidade do grupo ou
interferir, explicitamente, em um projeto institucional ou social. Nesse plano começam
a se manifestar mediações entre o conhecimento tácito e o explícito; entre as
interações e as relações sociais; entre as questões de poder presentes no universo
micro das primeiras e as determinações históricas econômico-sociais das
segundas.
Tais mediações podem
ser vistas se admitirmos que, nas interações, agimos também em função de
expectativas institucionais e sociais. No plano macrossocial, o sujeito com
quem a pessoa interage é coletivo, é institucional.
As expectativas e as
respostas que se dão a elas determinam, em alguma medida, as condutas no nível microssocial,
assim como estas podem se articular em interesses, projetos e ações comuns que
acabam por organizar grupos sociais que passam a se constituir também como
sujeitos coletivos, cujas práticas podem ultrapassar interações locais em
direção a relações sociais de alianças e/ou conflitos com outros sujeitos
coletivos.
Em qualquer um desses
casos, porém, a interação precisa enfrentar “quebra de expectativas”, tensões,
para que as ações reprodutoras se desestabilizem e se abram possibilidades
criadoras com o emergente. É verdade, porém, que a classe e os grupos sociais que detêm o poder econômico-político na
sociedade não se dispõem a perdê-lo em nome da compreensão.
Por isso, se
procede aceitar que as consequências sociais da definição da realidade como construção
social (BERGER, LUCKMAN, 1973) muitas vezes são irrelevantes no plano
institucional ou estrutural de organização da sociedade (GOFFMAN, 1991).
Nesse plano, a
desigualdade de poder é tanto estrutural quanto extrema e o princípio que acaba
ordenando as relações é o da hegemonia – que implica a obtenção do consentimento ativo dos governados (GRAMSCI,
1991a) – e não o da compreensão.
Porém, para Gramsci, a contra-hegemonia
pressupõe transformações de ordem moral e intelectual, ao que associamos o
conceito de “experiência transformada” de Thompson (1981). Entendemos que esse
tipo de transformação pode ocorrer também no plano das interações sociais,
implicando a necessária valorização do senso comum.
Isso nos parece
corresponder ao que Caria enunciou como o
projeto crítico da etnografia, especialmente a dos conhecimentos profissionais
(ou simplesmente etnografia profissional) desenvolvida em sua perspectiva.
Alerta o autor, porém, que essa possibilidade está vinculada ao cumprimento dos
princípios compreensivos, o que impõe ao etnógrafo ser um bom tradutor da
reflexividade interativa do grupo para gerar aliados ideológicos no seu
interior.
Para além de uma tomada
de posição ético-política em relação à etnografia profissional, e de seus
princípios que rompem com o objetivismo e o subjetivismo em Ciências Sociais,
parece-nos que o potencial crítico dessa abordagem advém, primeiro, do fato de
ela considerar as desigualdades de poder nos processos de interação social;
segundo, por estudar tais interações no âmbito de um grupo social delimitado no
qual as práticas são construtoras de sentido e têm por referência tanto
relações sociais mais vastas, quanto a reflexividade social de seus membros.
Esse último fato impede que sejam vistas as determinações da estrutura social
como independentes dessas práticas.
Esse tipo de
delimitação cria a cultura
profissional como seu objeto teórico que, no cotidiano, expressa a
sobreposição de práticas sociais, identidades coletivas e reflexividade social (CARIA,
2011). A etnografia profissional crítica focaliza a cultura profissional
nessa perspectiva por entender que a estrutura social não é um constructo independente
das práticas sociais cotidianas.
CULTURA PROFISSIONAL=ESTRUTURA SOCIAL
Ao mesmo tempo, não abandona as relações
sociais de poder de natureza estrutural como referência. Por essa articulação
entre dimensões macro e microssociais, procura-se seguir o que o historiador
inglês Thompson (1981) incentiva:
recolocar a agência humana na história, ainda que esta seja marcada por uma ambivalência crucial: “parte sujeitos parte objetos, agentes voluntários de nossas próprias determinações involuntárias” (THOMPSON, 1981, p. 101).
recolocar a agência humana na história, ainda que esta seja marcada por uma ambivalência crucial: “parte sujeitos parte objetos, agentes voluntários de nossas próprias determinações involuntárias” (THOMPSON, 1981, p. 101).
O conceito de
experiência que esse mesmo historiador elabora pode nos ser útil na articulação
entre essas duas dimensões da vida social. Para ele, a experiência – uma categoria imperfeita –compreende
a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a
muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo
de acontecimento.
A experiência não seria um nível muito inferior de
pensamento que produziria um grosseiro senso comum. Ao contrário, ela é
abordada como válida e efetiva, ainda que dentro de determinados limites: “o
agricultor ‘conhece’ suas estações, o marinheiro ‘conhece’ seus mares, mas ambos
permanecem mistificados em relação à monarquia e à cosmologia” (THOMPSON, 1981,
p. 16).
Portanto, por mais
espontânea que seja a experiência, ela nunca está desprovida de pensamento. A
experiência “surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são
racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo”
(THOMPSON, 1981, p. 16), ou seja, todos
os homens são filósofos (GRAMSCI, 1991b), mesmo que seu pensamento seja o
mais simples e desagregado senso comum. Assim, a experiência está sempre
acompanhada de um conhecimento mesmo que este seja de natureza tácita.
Assim, Thompson parece
nos levar tanto ao princípio da reflexividade
que usamos para teorizar sobre a cultura profissional, quanto para enunciar que
a experiência vivida pode ser também percebida e modificada; e é esta que
provoca pressão sobre todo o ser social.
Portanto, encontramos aqui um
sentido para se estudar o senso comum, o conhecimento prático, os saberes de
grupos profissionais a partir de sua própria experiência, e não somente dos
processos formais de aquisição do conhecimento científico: a sociedade produz
os sujeitos e estes produzem sociedade, não só quando se organizam e lutam
contra interesses antagônicos, mas quando produzem a si próprios na sua
experiência social cotidiana.
CARACTERÍSTICAS E
PRINCÍPIOS DA ETNOGRAFIA PROFISSIONAL CRÍTICA
O intento das
etnografias profissionais é o de recolher
dados de observação e de descrição de práticas e de interações sociais
relativas a atividades de uma profissão e, portanto, a culturas profissionais,
o que confere a esse recorte uma especificidade frente à tradição antropológica
da etnografia (CARIA, 2000; 2005; 2011).
Como atividade de uma profissão entende-se o que é feito e pensado pelos membros de um grupo profissional quando interagem entre si ou quando interagem por referência ao papel e ao estatuto social da profissão a que reconhecem pertencer. Esses sujeitos criam para si, no seu processo de socialização profissional, uma imagem e uma ideia da sua função social, a partir do que julgam os outros e esperam de si, sendo essa expectativa partilhada pelos membros da profissão.
Como atividade de uma profissão entende-se o que é feito e pensado pelos membros de um grupo profissional quando interagem entre si ou quando interagem por referência ao papel e ao estatuto social da profissão a que reconhecem pertencer. Esses sujeitos criam para si, no seu processo de socialização profissional, uma imagem e uma ideia da sua função social, a partir do que julgam os outros e esperam de si, sendo essa expectativa partilhada pelos membros da profissão.
Nas rotinas, nas
categorizações, nas normas grupais e nos usos da escrita estão inscritos
saberes que implicitamente apenas dependem dos membros do grupo, embora não
sejam exclusivamente endógenos, em virtude de estarem misturados com
conhecimentos, dispositivos e tecnologias produzidos nas relações sociais.
As
etnografias profissionais, portanto, não têm somente a pretensão de recensear
os saberes de cada profissão, mas sim a de compreender
e explicar, de modo comparado, a relação entre os conhecimentos que advêm da
teoria e os que advêm da experiência, numa dada profissão.
A realização da
etnografia profissional implica construir uma interação específica – a do
etnógrafo com o grupo estudado –mediada ela própria por relações de poder. De
um lado há o poder do etnógrafo, que pode levar a interação aos termos
necessários à investigação científica (o próprio fato de ser um investigador,
com vínculos acadêmicos, expressa uma condição de poder). De outro há o poder
daqueles que conhecem seu cotidiano e que podem falar sobre ele, permitindo,
mais ou menos, o acesso do etnógrafo à sua realidade.
A racionalidade
compreensiva, aqui, pressupõe que o etnógrafo se disponha a abdicar do seu
poder (do seu etnocentrismo científico) em benefício de situações em que o
conhecimento tácito dos sujeitos emerja sem que seja decodificado
arbitrariamente por uma linguagem científica na qual esses sujeitos não se
reconheçam e/ou que desqualifique os saberes prático-experienciais construídos
no cotidiano.
Os sujeitos
investigados, por sua vez, também precisam se dispor a colocar seu poder em
suspenso para que haja um fluxo na interação. Tal abdicação recíproca não
supera as diferenças de poder entre ambos, mas não torna tais diferenças
obstáculos para a investigação. Podemos, então, caracterizar a etnografia
profissional com base em alguns princípios, a saber:
a) rompimento tanto com o objetivismo quanto com o
subjetivismo em Ciências Sociais;
b) consideração das desigualdades de poder nos processos
de interação social;
c) estudo de tais interações no âmbito de um grupo social
delimitado no qual as práticas são construtoras de sentido e têm por referência
tanto relações sociais mais vastas, quanto a reflexividade social de seus
membros;
d) em consequência, constituição da cultura como seu
objeto teórico que, no cotidiano, expressa a sobreposição de práticas sociais,
identidades coletivas e reflexividade social;
e) compatibilização da teoria e da linguagem comum na
construção do conhecimento científico.
A etnografia assim
delineada visa entender a união indissociável realizada cotidianamente pelos
sujeitos sociais entre fazeres e saberes e entre estes e as interpretações
que fazem coletivamente dessas ocorrências, para poderem gerir os processos de
socialização (definição e justificação de normas sociais), os processos de
mudança social e os “disfuncionamentos” do grupo (comportamentos desviantes ou gestão
de contradições e ambiguidades na divisão de tarefas ou relações com o
exterior) (CARIA, 2000).
Ao mesmo tempo, ao entendermos esses processos de
socialização como constituidores de culturas profissionais, propomos captar
elementos de identidade que poderiam transcender a delimitação do grupo
profissional em direção à classe social trabalhadora. Em outras palavras,
pensamos que a elucidação de elementos de negociação de poder entre sujeitos
que interagem no interior de um grupo profissional realizada em benefício de
sua identidade pode ajudar a revelar desigualdades de classe.
Para Thompson (1981),
a classe se manifesta quando os sujeitos percebem que suas experiências
isoladas são também coletivas. A classe não se faz só por referência a
outra classe, mas também na relação dentro da classe. Por isso, podemos
nos valer de seu pensamento para pensar a experiência não só de uma multidão de
trabalhadores, mas também de grupos pequenos. O que vale é se a experiência é
vivida e percebida como do grupo e não de indivíduos isolados. A experiência,
em Thompson, tem ligação com a práxis, no que se refere à capacidade
transformadora que ela carrega.
E esta se realiza no
plano do cotidiano, do senso comum, da cultura popular, lugares das
contradições e das ambivalências. As
etnografias profissionais estão vinculadas às culturas profissionais, o que
confere a esse recorte uma especificidade frente à tradição antropológica da
etnografia. Essa perspectiva da etnografia se opõe, simultaneamente:
a) à intervenção do investigador sobre o objeto a partir
de um diferencial de poder conferido por essa condição;
b) ao tratamento do senso comum partilhado por um grupo
social como um resíduo face ao valor conferido ao conhecimento científico;
c) à simples compreensão das interações sociais como
negociação de significados;
d) à recolha e ao tratamento de dados textuais com vista
a encontrar padrões de organização dos discursos e das representações do mundo
social dos quais os sujeitos são inconscientes ou nos quais eles não se
reconhecem (CARIA, no prelo).
Sobre esse último aspecto,
vale dizer que não se trata da análise de discurso ou de representações
sociais, mas sim de o etnógrafo tentar contribuir para a explicitação de
conhecimentos dos sujeitos investigados por eles próprios (ajudá-los a saber
que sabem).
ELEMENTOS PRÁTICOS
DAS ETNOGRAFIAS PROFISSIONAIS
Para a consecução dos
intentos das etnografias profissionais, é preciso que a metodologia de
investigação procure obter dados sobre
as atividades profissionais que, simultaneamente, se refiram a
regularidades e a variações, em diversos aspectos.
Primeiramente, as rotinas
da atividade devem ser abordadas em termos das práticas e que todos os dias
são realizadas (incluindo com quem, quando e onde), considerando tanto a parte
planejada dessas práticas quanto a que varia de acordo com circunstâncias das pessoas.
Também deve se ver o que dessa variação é salientada como situação imprevisível
e como reação de ajustamento ao não esperado.
Procura-se captar,
ao nível da linguagem cotidiana, o que é dito e repetido entre as pessoas
do grupo profissional (também incluindo com quem, quando e onde). Uma parte
dessa linguagem é técnica, isto é, típica dos protocolos de trabalho; mas é
relevante perceber aquilo que introduz, ao nível da linguagem, ambiguidades (variação
de sentido) no modo como as coisas são categorizadas. Por exemplo, pode-se
atribuir o mesmo significado a coisas diferentes ou a mesma coisa pode ter
significados diferentes em outros momentos.
Dentre ambiguidades,
há aquelas que podem indicar a tentativa de se obter consensos sobre o
sentido das coisas, o que é muito importante para o estudo da cultura profissional. Além
disso, as censuras e sanções que ocorrem na interação (normas do grupo)
devem ser vistas dando-se atenção ao que é descrito e considerado (incluindo
com quem, quando e onde) como não fazendo parte da identidade do grupo.
Finalmente, é válido também se observar o uso da escrita, isto é,
objetos e suportes escritos (em papel ou digitais) que são continuada e
repetidamente usados/produzidos (incluindo com quem, quando, onde e para quê),
qual a sua origem e natureza (quem os produziu e/ou usou originalmente) (CARIA,
2011).
A definição do campo
empírico deve considerar a possibilidade de acompanhamento do trabalho
profissional, com a regularidade e pelo período que seja tanto viável quanto
suficiente para a saturação do estar no campo. A permanência no campo visará à
observação sob os pressupostos já apresentados, sendo, então, o etnógrafo a principal
fonte de dados e o diário de campo, a principal ferramenta de registro, a ser
utilizada, preferencialmente, após cada período da observação. A observação
poderá ser guiada por um roteiro, mas de uma forma flexível, com prioridade
para a sensibilidade do etnógrafo em seu “ser” e “estar” no campo.
O tratamento dos
dados, por sua vez, é um momento da elaboração teórica sobre a
informação empírica. Em nossa experiência temos utilizado a técnica de
conteúdo de Bardin (2004) na perspectiva defendida por Rey (2002, p. 146), qual
seja, “aberta, processual e construtiva e [que] não pretende reduzir o conteúdo
a categorias concretas restritivas”. O desafio está na construção de categorias
que nos ajudem a organizar e sintetizar com sentido, fatos, momentos ou
processos da realidade observada.
Casa-Nova (2009)
explica que, ao longo da investigação por ela realizada e da sua narrativa
produzida, procedeu à construção de categorias interpretativas e categorias
conceptuais: as primeiras, resultando de um processo de interpretação
dos dados; as segundas, resultando também de uma interpretação dos
dados, mas tendo subjacente um processo de abstração mais complexo, mediante o
qual se deu a produção de conceitos. O eixo de cruzamento analítico dessas categorias
– interpretativas e conceptuais – seria, fundamentalmente, a síntese orientada
pelas categorias do método histórico-dialético.
O trabalho
etnográfico pode ser precedido de entrevistas, com o intuito de identificar
elementos de trajetórias educacional e profissional, visando compreender
motivações que permeiam a atuação profissional no contexto dado. Nesse caso,
convém que as entrevistas sejam do tipo semiestruturadas ou semidiretivas,
na qual existem perguntas previamente elaboradas para que não se percam de vista
os objetivos que a orientam.
Porém, a “conversa” deve ser mais guiada pelos
objetivos que se têm em mente do que pela formalização das perguntas. É
fundamental que as pessoas se ponham a falar, mas que também consigamos que
sua fala se oriente para os nossos objetivos, sem que tenhamos, para isso,
que invadir ou interceptar fala dos sujeitos, com o risco de comprometer
seu fluxo e, assim, perder esse meio como fonte de dados.
Podem ser necessárias
e/ou úteis para se identificar sujeitos da pesquisa a serem entrevistados
depois em profundidade e observados conforme os procedimentos etnográficos.
Nesse tipo de entrevista, uma conotação mais aberta pode ser
conveniente, pois essas não são iguais às entrevistas etnográficas,
tendencialmente híbridas (fechada e aberta). Estas são geralmente desenvolvidas
de modo informal durante (ou após) uma observação participante num dado
local e fundamentam-se no quadro de uma epistemologia que serve ao método
etnográfico. Quando possível, pode-se também fazer entrevistas etnográficas no
sentido de consolidar e/ou validar as interpretações do etnógrafo e perceber o
reconhecimento dessas interpretações pelos sujeitos observados.
Uma última questão
refere-se à natureza da “observação participante” que caracteriza a
etnografia. Tendemos a nos posicionar pelo viés do que Caria (2000) chama de
“implicação periférica do investigador”, posição semelhante assumida também por
Neves (2008) e Casa-Nova (2009). A ideia de implicação vincula-se à perspectiva
qualitativa e não positivista de investigação e nos remete à relação
indissociável e contraditória entre sujeito e objeto.
Porém, na etnografia, a
implicação não se confunde com a submersão do investigador no local,
resguardando-se “a distância analítica não desconexa do objeto” (LEVY3, 1985, citado por
CARIA, 2000, p. 104). Também não é o mesmo que a investigação-ação, apesar de esta
última igualmente pressupor relações de implicação. Ocorre que, enquanto a
segunda tem os objetivos de intervenção-mudança como centrais, a primeira os
tem como periférica.
Alerta aquele autor,
entretanto, que os níveis de participação não são uma relação inversa da
observação (mais observação, menos participação e vice-versa), pois a
observação sem participação tende a abandonar a ideia de implicação, o que
pode levar a um resvalo da investigação pelo viés positivista. Portanto, a
presença prolongada no campo é sempre participação, pois condiciona, de algum
modo, o comportamento dos outros, assim como o investigador também se vê
influenciado pelos sujeitos observados. Dessa forma, a implicação periférica do
etnógrafo nas relações do/com o grupo investigado significa alimentar um
posicionamento que, ao mesmo tempo, não é neutro e não é tampouco invasivo face
aos acontecimentos.
Essa perspectiva da
observação-participação não significa a perda do potencial crítico da etnografia
em benefício exclusivamente do potencial compreensivo. Um texto fidedigno à
realidade do grupo investigado e que, por isso, não produz somente conhecimento
sobre o grupo, mas que pode ser reconhecido e (re)apropriado pelo próprio grupo,
é também um instrumento desse mesmo grupo para alargar seu poder, à medida que
a etnografia seja uma espécie de inventário do seu “conformismo” (GRAMSCI,
1991b).
Desse modo, o texto etnográfico torna-se, ele próprio, uma emergência
produzida na interação, mas também sistematizado como um conhecimento que não é
sobre o grupo, mas do próprio grupo. Por isso, um texto, que é também um
instrumento do grupo para alargar seu poder com base no seu (novo) senso comum
(CARIA, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar
uma abordagem teórico-metodológica para a investigação de saberes
profissionais. Trata-se de uma tentativa de captar conhecimentos reais de
trabalhadores, geralmente práticos, tácitos e próprios da experiência
profissional. De alguma maneira, colocamo-nos o desafio de pensar o
empírico, o local, o específico, os sujeitos e suas interações, sem perder a
ligação com a totalidade social. Em outras palavras, ver a sociabilidade
que se produz no conjunto das relações sociais, mas que também se produz e se expressa
na singularidade das interações e na particularidade das culturas
profissionais. Trata-se de um estudo que tem as categorias experiência e
cultura como chaves para a compreensão da vida social.
Nesse sentido, o
pensamento de E. Thompson (1988; 1998; 1981; 2002) é-nos uma referência
relevante. Do ponto de vista teórico-metodológico, entendemos que as categorias
experiência, cultura e saberes, porque passíveis de ser tratadas empírica e
fenomenicamente em face de um dado objeto, podem nos mostrar singularidades de
grupos sociais, enquanto conceitos como classe e consciência de classe sejam
categorias das particularidades e da totalidade históricas das relações sociais
de produção. A totalidade social poderia, então, ser compreendida pelas mediações
que vinculam essas dimensões da realidade.
Assim, consideramos
que a compreensão do objeto em sua manifestação empírica e fenomênica pode
ser uma necessidade para que as mediações que vão para além desta não sejam
meras deduções lógicas ou idealizadas. Parece-nos que o materialismo histórico-cultural
defendido por Thompson não visa transcender imediatamente o fenômeno da vida
social cotidiana em busca da sua essência. Ao contrário, reconhece que não se
pode ir além do fenômeno sem se buscar compreendê-lo exaustivamente na sua
manifestação empírica.
Compreender o
fenômeno na sua manifestação empírica parece-nos ser o projeto da
fenomenologia, enquanto o do materialismo é tentar captar o que o fenômeno revela
e, ao mesmo tempo, esconde. A orientação por esse segundo projeto não implica
negar o primeiro, mas a partir deste reconhecer que o conhecimento que
prescinde da realidade empírica ou que a transcende em nome de um sistema
conceitual finito pode se reduzir ao teorismo, uma ponta do viés científico que
no outro extremo se encontra com o seu oposto: o empirismo.
Concluímos, então,
que nossos estudos sobre os saberes profissionais, além de nos permitir
compreender sua natureza fenomênica e captar mediações no âmbito da relação
entre trabalho e educação, podem nos ajudar a ver em que medida, ao se
constituírem como grupos profissionais, eles potencializam sua organização como sujeitos de classe. Não
obstante, ao colocarmos esse horizonte como possibilidade, não queremos que ele
nos impeça de ver o empírico, o cotidiano, o comum.
Assumimos,
finalmente, a etnografia do conhecimento profissional numa perspectiva crítica
como a base teóricometodológica de nossas pesquisas sobre esse objeto,
entendendo que o potencial crítico de seu projeto está no fato de esta entender
que a estrutura social não é um
constructo independente das práticas sociais cotidianas. Ao mesmo tempo, não abandona as relações sociais de poder
de natureza estrutural como referência. Por essa articulação entre
dimensões macro e microssociais, procura-se seguir o que o próprio Thompson
incentiva: recolocar a agência humana na história, ainda que esta seja marcada
por uma ambivalência crucial que nos faz, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos;
ou, dito de outro modo, produtores de nossa existência em meio à dualidade
entre dimensões voluntárias da agência e outras involuntárias da estrutura.
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