Por KUENZER & GRABOWSK
Ao
iniciar este texto, uma primeira reflexão se faz necessária: existe um campo
epistemológico próprio da educação profissional? Entendendo campo
epistemológico como o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos
resultados das diversas ciências, destinado a determinar sua origem lógica, há que compreender a educação profissional,
não como um campo em si, mas como parte do campo da ciência da educação,
que se constitui por categorias de método e por categorias de conteúdo.
E se,
do ponto de vista do método, compreendermos o processo de produção do
conhecimento a partir da ação humana sobre a realidade, não há como compreender
e sistematizar as categorias de conteúdo senão a partir das suas relações com a
realidade que as determinaram, e ao mesmo tempo são determinadas por elas.
Uma
segunda reflexão que se faz necessária diz respeito ao fato de que existem,
pelo menos três posturas epistemológicas que definem as formas de
interpretação da realidade:
i)positivismo
o conhecimento está inscrito no objeto investigado, devendo a verdade ser
buscada na natureza.
ii) fenomenologia
o objeto é apreendido pela intencionalidade do sujeito, que o reduz à sua
essência.
III) dialética marxista
conhecer é alcançar a dinâmica histórica do real, do objeto em todos os seus
aspectos em seu contínuo movimento, em sua permanente relação com o sujeito. Ex. Campo da educação profissional.
Assim,
ao analisar as categorias que constituem a educação profissional, há que
compreendê-las como parte do campo epistemológico da educação, derivando, a
partir de categorias que são gerais, as que lhe são específicas, e a partir de
uma postura epistemológica definida; no caso deste artigo, a dialética marxista.
A
partir dessa opção epistemológica, entende-se que essas categorias só podem ser
compreendidas na materialidade das relações de produção nas quais se inserem:
as relações entre capital e trabalho, contraditórias no modo de produção
capitalista.
Para
dar clareza à análise, necessário se faz elucidar que a autora trabalha, com
apoio no método da economia política, com as categorias em duas dimensões:
A)as categorias de método
As categorias de método são as que definem as formas de relacionamento entre o pesquisador (sujeito) e o objeto da investigação; na dialética marxista, essas categorias são:
A)as categorias de método
As categorias de método são as que definem as formas de relacionamento entre o pesquisador (sujeito) e o objeto da investigação; na dialética marxista, essas categorias são:
2)práxis
3)totalidade
4)mediação.
b)As categorias de conteúdo
São os fios condutores da análise, que expressam, no particular, as explicações mais gerais; são recortes particulares, definidos a partir do objeto e das finalidades da investigação, a partir dos quais é possível apreender as relações, os conceitos, as formas de organização.
São os fios condutores da análise, que expressam, no particular, as explicações mais gerais; são recortes particulares, definidos a partir do objeto e das finalidades da investigação, a partir dos quais é possível apreender as relações, os conceitos, as formas de organização.
São as categorias de
conteúdo que servem de critério de seleção e organização da teoria e dos
fatos a serem investigados, fornecendo à pesquisa o princípio de sistematização
que lhe conferirá sentido, cientificidade, rigor, relevância (KUENZER,
1998).
A
partir dessas considerações, serão analisadas algumas das categorias de
conteúdo constituintes do campo epistemológico da educação, que assumem
especificidades ao se tratar de educação profissional. Dada a necessidade
de recorte em face das dimensões desse texto, a análise contemplará o atual
regime de acumulação: o da produção
flexível.
Regime de acumulação rígida (fordismo) e regime de acumulação flexível (toyotismo) |
Para
a análise que será levada a efeito, parte-se do pressuposto que cada sociedade, em cada momento de
desenvolvimento das forças produtivas, formula projetos pedagógicos que atendam
às demandas de formação de subjetividades para atender às necessidades da
divisão social e técnica que caracterizam o modo de produção dominante (GRAMSCI,
1978).
A
categoria princípio educativo do trabalho constitui uma das categorias de conteúdo
centrais do campo epistemológico da educação a partir da dialética
marxista.
O princípio educativo define os processos de formação dos
intelectuais que irão desempenhar as diferentes funções no sistema social e
produtivo, e sua apreensão só será possível a partir do estudo das bases
materiais que lhe dão origem. É a partir dele que se desdobram as categorias
que irão compor o campo específico da educação profissional, e que permitem
apreender os diferentes projetos de formação em um dado regime de acumulação,
com vistas à acumulação do capital.
Na sociedade capitalista,
o princípio educativo expressa as contradições entre capital e trabalho, que
originam projetos educativos em permanente disputa, cuja objetivação, sempre
parcial, depende da correlação de forças decorrente das relações sociais e
produtivas em cada regime de acumulação.
2
A DUALIDADE ESTRUTURAL NEGADA PELA FLEXIBILIZAÇÃO
Entre
as categorias que permitem compreender a educação no modo de produção
capitalista está a dualidade estrutural;
contudo, é a partir do ensino médio, e em especial na educação profissional,
que essa categoria apresenta maior poder explicativo.
No regime de acumulação rígida, em que havia clara
definição entre as funções operacionais, técnicas, de gestão e de desenvolvimento
de ciência e tecnologia típicas das formas tayloristas/fordistas de organizar o
trabalho, as trajetórias educativas eram bem definidas e diferenciadas, de modo
a atender às necessidades de disciplinamento
dos trabalhadores e dirigentes.
Em outro texto, denominei essa modalidade de
dualidade estrutural assumida, porquanto claramente explicitada. Dadas as novas
formas de organização e gestão do trabalho, a dualidade estrutural assume nova
forma, que denominei de dualidade negada,
uma vez que, justificada pela flexibilização trazida pela nova base técnica
da microeletrônica, supõe a sua superação. (KUENZER, 2007).
No
regime de acumulação flexível, do ponto de vista do capital, a substituição
da base rígida pela base flexível, através da mediação da microeletrônica, traz
um novo discurso sobre a dualidade, que aponta, supostamente, para a sua
superação.
Este
discurso se justifica apontando os sinais de esgotamento do fordismo e do
keinesianismo na contenção das contradições inerentes ao capitalismo, resultantes
da rigidez nos investimentos, dos mercados, da alocação e dos contratos de
trabalho, das posições dos sindicatos, das relações entre estado, capital e
trabalho expressas nas políticas públicas, das formas de organizar e gerir o
processo de trabalho e das tecnologias de base física.
A
superação da acumulação rígida pela acumulação flexível traz a necessidade de novas
formas de disciplinamento da força de trabalho, que contemplem o
desenvolvimento de subjetividades que atendam às exigências da produção e
da vida social, caracterizadas pela flexibilidade, para que acompanhem as
mudanças tecnológicas decorrentes da dinamicidade da produção
científico-tecnológica contemporânea, ao invés de profissionais rígidos, que
repetem procedimentos memorizados ou recriados através da experiência.
Para
que esta formação flexível seja possível, torna-se necessário substituir a
formação especializada adquirida em cursos profissionalizantes voltados para
ocupações parciais, pela formação geral adquirida através de escolarização
ampliada, que abranja no mínimo a educação básica, a ser disponibilizada para
todos os trabalhadores.
O
novo discurso do capital sobre a educação aponta para a necessidade da
formação de profissionais flexíveis; se o trabalhador transitará ao longo
de sua trajetória laboral por inúmeras ocupações e oportunidades de educação
profissional, não há razão para investir em formação profissional
especializada; a integração entre as trajetórias de escolaridade e laboral
será o elo de integração entre teoria e prática, resgatando-se, desta
forma, a unidade rompida pela clássica forma de divisão técnica do trabalho,
que atribuía a uns o trabalho operacional, simplificado, e a outros o trabalho
intelectual, complexo.
Assim,
a distinção entre as modalidades propedêutica e profissional restaria
superada pela oferta de educação geral para todos, assegurada mesmo nos
cursos profissionalizantes, como determina a nova LDB. A formação profissional
dar-se-á a partir da formação geral, que deverá ter caráter mais abrangente do
que especializado, a ser complementada ao longo das práticas laborais. Como a
proposta é substituir a estabilidade pela dinamicidade, à educação cabe desenvolver competências
que permitam aprender ao longo da vida, uma das categorias chave na
pedagogia da acumulação flexível.
Do
ponto de vista do trabalho, contudo, as pesquisas já mostram que a expansão da
educação geral para a classe trabalhadora se deu, de modo geral, pela oferta de
cursos precarizados, revestidos de caráter
certificatório, cuja qualidade, que em muito se distancia dos cursos
disponibilizados pela rede privada à burguesia e à pequena burguesia, não
favorecem inclusão menos subordinada no mundo do trabalho (KUENZER, 2006 e
2007).
Em resumo, quando o capital disponibiliza para a classe trabalhadora,
uma modalidade que já correspondeu, em outro regime de acumulação, ao seu
projeto de dominação, o faz pela via precarizada. Assim, como o ensino médio de educação geral, caro à burguesia no
regime de acumulação rígida, já não atende ao seu projeto no regime de educação
flexível, ele passa a ser generalizado para a classe trabalhadora; para a
classe dominante, no novo regime, é o conhecimento em ciência e tecnologia que
passa a ser o diferencial.
Em outro texto, denominei essa nova manifestação da
dualidade estrutural de “dualidade invertida”, uma vez que há estudos que
evidenciam que, para os jovens mais pobres, a expansão da educação geral não
ampliou as oportunidades de inserção no mundo do trabalho (RIBEIRO e NEDER,
2009; KUENZER, 2010; SUHR, 2014).
Do
ponto de vista das novas formas de disciplinamento demandadas pelo capital,
elas objetivam a conformação de subjetividades flexíveis que se ajustem
aos resultados do acelerado processo de destruição e reconstrução de
habilidades, da terceirização, do crescimento dos níveis de desemprego
estrutural, da redução dos salários, da desmobilização sindical. (HARVEY, 1992,
p.141)
Em
resumo, essas novas formas de disciplinamento buscam a submissão, por parte da classe trabalhadora, aos processos
flexíveis caracterizados pela intensificação e pela precarização, a configurar o
consumo cada vez mais predatório e desumano da força de trabalho.
Assim,
revela-se a dimensão ideológica do discurso do regime de acumulação flexível
sobre a educação, uma vez que aprofundam-se as diferenças de classe, e
consequentemente, aprofunda-se a dualidade estrutural, expressa na crescente
polarização das competências.
Analisada
a dimensão ideológica da dualidade negada no regime de acumulação flexível,
necessário se faz apontar que, por contradição, também há positividades nessa proposta para a
classe trabalhadora, no que diz respeito à educação profissional. Dentre elas,
há que destacar a
ampliação da oferta de educação básica para a classe trabalhadora, que passou a
ser demandada pelo próprio capital a partir dos anos 90, em face da
crescente utilização das novas tecnologias na vida social e no processo
produtivo.
A
partir do momento em que a produção e o consumo na acumulação flexível passam a
demandar uma relação com o conhecimento sistematizado, ou seja, de natureza
teórica, mediada pelo domínio de competências cognitivas complexas, com
destaque para as competências comunicativas e para o domínio da lógica formal, há
um processo crescente de intelectualização das competências, contrariamente
ao que ocorria no taylorismo/fordismo, cuja concepção de conhecimento
fundava-se na dimensão tácita: resolver situações pouco complexas através de
ações aprendidas através da experiência.
Como
a nova base técnica demanda solução de problemas gerados por sistemas
tecnológicos complexos, ampliam-se as demandas por escolarização, o que
gerou a possibilidade de ampliação da oferta de educação em todos os níveis
e modalidades, com destaque para a expansão, e de modo interiorizado,
da rede dos Institutos Federais de Educação e para a criação de novas
Universidades Federais regionalizadas.
Do
mesmo modo, a defesa da expansão da escolaridade para a classe trabalhadora,
feita pelo próprio capital, abriu espaço para a defesa, pela sociedade
civil, de diretrizes curriculares mais democráticas junto ao MEC e ao CNE; de
programas de formação de professores; de programas de investimento em pesquisa;
de propostas de ampliação do investimento; e da oferta de programas de educação
média e profissional no âmbito dos Planos Nacionais de Educação.
3
EDUCAÇÃO GERAL PARA A FORMAÇÃO DO “TRABALHADOR MULTITAREFA”
A
formação de subjetividades flexíveis, tanto do ponto de vista cognitivo
quanto ético se dá, predominantemente pela mediação da educação geral; é
através dela, disponibilizada de forma diferenciada por origem de classe, que
os que vivem do trabalho adquirem conhecimentos genéricos que lhes permitirão
exercer, e aceitar, múltiplas tarefas no mercado flexibilizado.
Ser multitarefa, neste
caso, implica em exercer
trabalhos simplificados, repetitivos, fragmentados, para o que é
suficiente um rápido treinamento, a partir de algum domínio de educação
geral, o que não implica necessariamente no acesso à educação básica completa.
Neste
sentido, a educação geral, assegurada pelos níveis que compõem a
educação básica, tem como finalidade dar acesso aos conhecimentos
fundamentais e às competências cognitivas que permitam a integração à vida
social e produtiva em uma organização social com forte perfil
científico-tecnológico, um dos pilares a
sustentar o capitalismo tardio, na perspectiva do disciplinamento do
produtor/consumidor; e por isto a burguesia não só a disponibiliza, mas a
defende, para os que vivem do trabalho.
Ser
flexível, para uma expressiva parcela de trabalhadores, significa adaptar-se
ao movimento de um mercado que inclui/exclui, segundo as necessidades do
regime de acumulação.
A competência, nos pontos desqualificados das cadeias
produtivas, resume-se ao conhecimento tácito, demandado pelo trabalho concreto.
Não há, para estes trabalhadores que atuam nos setores precarizados, demandas
relativas ao desenvolvimento da competência de trabalhar intelectualmente em
atividades de natureza científico-tecnológica, em virtude do que não se
justifica formação avançada.
CONHECIMENTO TÁCITO: precarizados
CONHECIMENTO DE NATUREZA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO: Qualificados
CONHECIMENTO TÁCITO: precarizados
CONHECIMENTO DE NATUREZA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO: Qualificados
Neste
sentido, as políticas de educação, ao
negar aos que vivem do trabalho, a possibilidade de acesso à formação
tecnológica, em nome de uma educação genérica, respondem às demandas da
acumulação.
Para
os que exercerão atividades complexas na ponta qualificada das cadeias produtivas, a educação básica é rito de
passagem para a educação científico-tecnológica e sócio-histórica de alto nível.
Nestes casos, a flexibilidade, atributo geralmente exercitado internamente às
firmas, advém da capacidade de trabalhar intelectualmente e atuar praticamente,
para usar a expressão gramsciana, (GRAMSCI, 1978), estabelecendo-se uma maior
integração entre concepção e atuação. Ou, como afirma Antunes (2002, p. 42/43),
Ao mesmo tempo, transfere parte do
saber intelectual para as máquinas informatizadas que se tornam mais
inteligentes, reproduzindo parte das atividades a elas transferidas pelo saber
intelectual.
Ser
multitarefa, para
os trabalhadores que atuam
nos pontos mais qualificados das cadeias produtivas, significa a
capacidade de adaptar-se a múltiplas situações complexas e diferenciadas,
que demandam o desenvolvimento de competências cognitivas mais sofisticadas que
permitam a solução de problemas com rapidez, originalidade e confiabilidade.
Para tanto, há que assegurar formação avançada, que articule as dimensões geral
e específica.
A segunda categoria, portanto,
que configura a dualidade na acumulação flexível, é a distribuição desigual e
diferenciada de educação que, ao contrário do que ocorria no
taylorismo/fordismo, valoriza
a educação básica para os que vivem do trabalho, como condição para a formação
flexível, e educação
específica, de natureza científico-tecnológica e sócio-histórica para os que
vão exercer o trabalho intelectual, de modo a assegurar que a posse do
que é estratégico, nesse caso o conhecimento que permite inovação, permaneça
com o capital.
A distribuição desigual e diferenciada de educação assegura que a posse do que é estratégico, nesse caso o conhecimento que permite inovação, permaneça com o capital. |
A
estratégia através da qual o conhecimento é disponibilizado/negado segundo
as necessidades desiguais e diferenciadas dos processos de trabalho integrados
é o que temos chamado de inclusão excludente na ponta
da escola. Ao invés da
explícita negação das oportunidades de acesso à educação continuada e de
qualidade, há uma aparente disponibilização das oportunidades educacionais,
através de múltiplas modalidades e diferentes naturezas, que se caracterizam
por seu caráter desigual e na maioria das vezes meramente certificatório,
que não asseguram domínio de conhecimentos necessários ao desenvolvimento de
competências cognitivas complexas vinculadas à autonomia intelectual, ética e
estética.
Conclui-se, desta rápida
exposição, que a relativização da qualificação com foco na ocupação permite a
formação de um maior contingente de trabalhadores com mais educação, se
possível básica completa, e até superior, o que viabilizará maior flexibilidade
em seu uso combinado ao longo das cadeias produtivas. Desta forma, caracteriza-se menor
dependência do capital em relação ao trabalho qualificado, que, pelo uso
flexível, fica mais vulnerável.
Já o conhecimento
científico tecnológico, integrado à cultura e ao trabalho, por seu caráter estratégico
para a competitividade através da inovação, tem sua distribuição mais
controlada, e embora
também seja disponibilizado de forma diferenciada para atender aos arranjos
flexíveis, tem caráter mais elitizado.
Enfim,
a relativização da qualificação pela banalização das competências, ao
tempo que liberta o capital das competências específicas, lhe permite maior
liberalidade quanto à oferta de educação mais ampliada, o que, inclusive, passa
a defender...desde, é claro, que mantenha privada a propriedade do
conhecimento estratégico à acumulação, qual seja, o conhecimento
científico-tecnológico e sócio-histórico de ponta, reservado aos
intelectuais seus prepostos.
4
A INTELECTUALIZAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS: A RELAÇÃO ENTRE CONHECIMENTO TÁCITO E
CONHECIMENTO CIENTÍFICO
O
processo de intelectualização das competências no regime de acumulação
flexível, decorrente da base microeletrônica, reconfigura a relação entre
conhecimento tácito e conhecimento científico, trazendo novos elementos à
constituição teórica desta categoria.
No
regime de acumulação rígida, a competência, predominantemente psicofísica e
fragmentada, advinda antes da experiência
do que da relação com o conhecimento sistematizado, tinha natureza
predominantemente tácita, para a
maioria das ocupações.
Este conhecimento, subjetivado, constitui-se de formas
inconscientes, não sistematizadas, não transferíveis e geralmente não
reconhecidas, através das quais os trabalhadores, mesmo desqualificados,
resolvem os problemas derivados das prescrições de trabalho, a partir do que
têm amplo poder de intervenção. (JONES e WOOD, 1984)
Esse
conhecimento, contudo, não desaparece com a implantação de novas tecnologias,
em particular com as de base microeletrônica, mas muda de qualidade, passando a
exigir maior aporte de conhecimentos científicos que não podem ser obtidos
somente através da prática, senão através de cursos sistematizados.
Contudo,
se a implantação de novas tecnologias de base microeletrônica não prescinde do
conhecimento tácito dos trabalhadores, demanda relação permanente e
sistematizada com o conhecimento teórico, através do domínio das categorias do
trabalho intelectual, o que leva à necessidade de formação sistematizada.
Esta
conclusão, ao tempo que valoriza o conhecimento tácito, contraditoriamente põe
os trabalhadores em maior dependência de conhecimentos científicos a serem
obtidos através de processos formativos escolares e não escolares, o que pode
levar ao aprofundamento da dualidade. Assim é que os trabalhadores com
dificuldades de requalificação intelectualizada em decorrência da precarização
cultural derivada da origem de classe, tendem ou à exclusão ou à inclusão nos
setores mais precarizados nos arranjos flexíveis de força de trabalho.
Vista
desta forma, a relação entre conhecimento tácito e conhecimento científico na
base microeletrônica não é de oposição, e sim de articulação dialética, posto
que são categorias que se integram nos processos de trabalho flexibilizados,
nos quais a prevalência do tácito ou do científico responde à especificidade do
trabalho a ser realizado por uma força de trabalho de qualificações
diferenciadas que se articulam para atender às necessidades das cadeias
produtivas.
Ou,
como afirma Antunes, ontologicamente prisioneira do solo material estruturado
pelo capital, o saber científico e o saber laborativo mesclam-se mais
diretamente no mundo contemporâneo; contudo a transferência das capacidades
intelectuais para a maquinaria, como afirma autor, acentua a transformação do
trabalho vivo em trabalho morto, mas não pode eliminá-lo. (2005, p. 41)
A transferência das capacidades intelectuais para a maquinaria acentua a transformação do trabalho vivo em trabalho morto |
Llory
reforça este argumento com dados de pesquisa sobre os acidentes industriais,
concluindo que é no e pelo trabalho cotidiano e graças à atividade e ao
savoir-faire (obtenção de êxito) dos trabalhadores em todos os níveis, que a maioria dos acidentes
latentes não se tornam acidentes ativos (2001, p. 21a 26). Quando os controles
automatizados falham, ou quando o planejador do sistema de controle não previu
proteções para um dado evento, o controle dos acidentes depende do conhecimento
dos trabalhadores, ou seja, do trabalho vivo.
A
base microeletrônica, portanto, a medida em que traz à discussão a concepção de
competência enquanto práxis, apontando para a relação dialética que se
estabelece entre conhecimento tácito e conhecimento científico, e valorizando o
trabalho vivo, aponta a necessidade de uma formação mais complexa da força de
trabalho, mais multifuncional, que será explorada de modo mais intenso e
sofisticado (ANTUNES, 2005, p.41).
É importante lembrar, contudo, que esta
demanda de formação mais intelectualizada, contrariando o discurso do capital,
não se distribui por toda a cadeia produtiva, estando presente apenas nos
setores tecnologicamente mais desenvolvidos. Para os trabalhadores que estão presos a tarefas desqualificadas ou pouco
complexas tecnologicamente, o conhecimento
tácito permanece fundamental.
De qualquer modo, estas
conclusões trazem ao debate o caráter mediador da ação educativa, que articula,
no plano do pensamento e através do trabalho intelectual, teoria e prática, de
modo a permitir a compreensão e sistematização do conhecimento tácito, e sua
transformação em conhecimento científico. Justifica-se, deste modo, o resgate
das ações educativas sistematizadas, escolares e não escolares, para os que
vivem do trabalho, na contramão das práticas elitistas do regime de acumulação
flexível, em que pese o discurso seja o da efetiva democratização.
5
ARRANJOS FLEXÍVEIS DE COMPETÊNCIAS DIFERENCIADAS
Diferentemente
do que ocorria no taylorismo/fordismo, onde as competências eram desenvolvidas
com foco em ocupações previamente definidas e relativamente estáveis, a integração produtiva se alimenta do
consumo flexível de competências diferenciadas que se articulam ao longo das
cadeias produtivas.
Estas combinações não seguem modelos pré-estabelecidos,
sendo definidas e redefinidas segundo as estratégias de contratação e
subcontratação que são mobilizadas tendo em vista atender, de forma
competitiva, as necessidades do mercado, e assim assegurar as maiores margens
de lucro possíveis, que, no processo de internacionalização, tendem a ser
estreitadas. Em decorrência, só podem ser apreendidas através da análise da
dinâmica da integração produtiva enquanto totalidade complexa em permanente
processo de construção e reconstrução, a partir da lógica da acumulação
flexível.
Consequentemente,
os arranjos flexíveis, em substituição à polarização taylorista/fordista de
competências, não podem ser compreendidos como mera oposição, rígida e formal,
entre os que têm formação científico-tecnológica avançada, e por isso se
incluem, e a grande massa de trabalhadores precariamente escolarizados, cuja
força de trabalho é consumida predatoriamente em trabalhos desqualificados, ou
é excluída.
São combinações que ora incluem, ora excluem trabalhadores com
diferentes qualificações, de modo a constituir corpos coletivos de trabalho
dinâmicos, através de uma rede que integra diferentes formas de subcontratação
e trabalho temporário, que, ao combinar diferentes estratégias de extração de
mais-valia, asseguram a realização da lógica da mercantil.
Se
há combinação entre trabalhos desiguais e diferenciados ao longo das cadeias
produtivas, há demandas diferenciadas, e desiguais, de qualificação dos
trabalhadores; contudo, os arranjos são definidos pelo consumo da força de
trabalho necessário, e não a partir da qualificação. O foco não é a qualificação em si, mas como ela se situa em dada cadeia
produtiva, com o que ela se relativiza; a priori, não há como afirmar que
certo trabalhador é ou não qualificado, uma vez que isto se define a partir de
sua inclusão na cadeia; ou seja, a
dimensão de relação social da qualificação se superalativiza na acumulação
flexível, que avança na centralização do trabalho abstrato.
O que
determina a inclusão na cadeia, portanto, não é a presença ou a ausência de
qualificação, mas as demandas do processo produtivo que combinam diferentes
necessidades de ocupação da força de trabalho a partir da tarefa necessária à
realização da mercadoria.
Daí o caráter “flexível” da
força de trabalho; importa menos a
qualificação prévia do que a adaptabilidade, que inclui tanto as
competências anteriormente desenvolvidas, cognitivas, práticas ou
comportamentais, quanto a competência para aprender e para submeter-se ao novo,
o que supõe subjetividades disciplinadas que lidem adequadamente com a
dinamicidade, com a instabilidade, com a fluidez.
A
afirmação, portanto, da necessidade de elevação dos níveis de conhecimento e da
capacidade de trabalhar intelectualmente, professada no discurso sobre a
educação na acumulação flexível, mostra seu caráter concreto: a necessidade de ter disponível para
consumo nas cadeias produtivas, força de trabalho com qualificações desiguais e
diferenciadas, que combinadas em células, equipes, ou mesmo linhas,
atendendo a diferentes formas de contratação, subcontratação e outros acordos
precários, assegurem os níveis desejados de produtividade, através de processos
de extração de mais valia que combinam as dimensões relativa e absoluta.
Ao
contrário do discurso da negação da dualidade, a análise das formas de consumo
do trabalho nas cadeias produtivas evidencia
o aprofundamento da distribuição desigual, onde para alguns, dependendo de
onde e por quanto tempo estejam integrados nas cadeias produtivas, se
reserva o direito de exercer, e sempre provisoriamente, o trabalho intelectual
integrado às atividades práticas, a partir de extensa e qualificada trajetória
de escolarização; o mesmo não ocorre com a maioria dos trabalhadores, que desenvolvem conhecimentos tácitos pouco sofisticados, em atividades laborais de
natureza simples e desqualificada.
6
CONCLUSÃO: A FLEXIBILIZAÇÃO MATERIALIZA O CONSUMO PREDATÓRIO DA FORÇA DE
TRABALHO
A
análise realizada neste texto evidencia que a flexibilização do trabalho, categoria central a definir o campo
epistemológico da educação em geral e da educação profissional no regime de
acumulação flexível, longe de conduzir ao avanço no processo civilizatório do
próprio capital, representa o seu
esgotamento, destruindo os poucos direitos que a classe trabalhadora conquistou
ao longo de suas lutas. (FRIGOTTO, 2005, p. 69).
A
essência da flexilibização é a combinação ótima ( nunca máxima, pois esta
compromete o custo final do produto) entre investimento em ciência e tecnologia
e consumo de competências desiguais e diferenciadas ao longo das cadeias
produtivas.
A estratégia, portanto, é o aumento de produtividade através da integração dos sistemas de produção, e não da mera implantação da automação; esta, quando adotada, é definida a partir das necessidades da integração dos sistemas de produção.
A estratégia, portanto, é o aumento de produtividade através da integração dos sistemas de produção, e não da mera implantação da automação; esta, quando adotada, é definida a partir das necessidades da integração dos sistemas de produção.
É
através da subcontratação organizada que sistemas mais antigos, como o trabalho
domiciliar, familiar, artesanal e paternalista deixem de ser marginais e assumem um novo papel, passando a ser
orgânicos, e portanto fundamentais ao processo de acumulação.
Ou
seja, relações de trabalho que se
supunham superadas através do processo civilizatório do capital, retornam como estratégias essenciais ao
processo de acumulação, combinadas com relações mais contemporâneas mediadas
pela ciência e pela tecnologia, através da flexibilização.
Em síntese, se a flexilibilização e a integração são
categorias de conteúdo essenciais para assegurar ganhos ao capital, para
os trabalhadores elas assumem o significado de consumo predatório da força de
trabalho.
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