Por Jarbas
Novelino Barato
As lições de meu pai
podem indicar caminhos interessantes. Por isso, quero explorar aqui algumas
possibilidades do sentido da obra na formação profissional e em comunidades
de prática. Para nos referirmos a
ofícios como o que foi exercido por meu pai, costumamos utilizar o termo
‘mão-de-obra’.
Alguém já me disse que
o citado termo supõe um outro: cabeça-de-obra. Ou seja, nossa linguagem comum
consagra a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. E se tal separação
indica que o sentido da obra só pode ser apreendido pelos senhores da
concepção, o fazer carece de significado para os trabalhadores manuais. Essa
maneira de ver os saberes no trabalho ignora, penso eu, os modos pelos quais o
conhecimento se estrutura no interior das atividades produtivas.
Separação entre
concepção e execução certamente priva o trabalhador de poder. O sentido da
produção passa ser um privilégio das gerências (NOBLE, 1977). Mas não o priva
necessariamente de entendimento e compreensão daquilo que realiza. Mesmo em
profissões que perderam conteúdo e foram simplificadas, parece que os
trabalhadores continuam a entender que seus fazeres resultam em obra. Porém, os
analistas do saber do trabalho costumam ignorar a insistência
dos trabalhadores manuais em construir atos de intencionalidade para dar sentido ao fazer.
A
possibilidade de reduzir as atividades produtivas a execuções sem inteligência
exigiria, além do empobrecimento do conteúdo do trabalho, uma mão-de-obra
geneticamente desprovida de capacidades intelectuais. Como análises
convencionais das atividades laborais costumam ignorar tal circunstância, às
vezes é preciso recorrer à ficção. Em Brave
New World, Huxley nos mostra que trabalhadores manuais incapazes de
intencionar a obra precisam ser programados para tanto desde sua concepção in
vitro.
Estudos orientados pela
Teoria da Atividade sugerem que uma
das fontes de mudança à implantação e uso de sistemas tecnológicos é a ruptura
causada por atos de resistência dos trabalhadores e cidadãos.
Ignorar a inteligência
do trabalhador manual faz parte de um jogo que desqualifica aqueles cujas
funções foram ou são muito simplificadas. Tal ignorância serve para justificar
decisões gerenciais supostamente baseadas em domínio do processo produtivo.
Um
caso emblemático nesse sentido é a conhecida história de Schmidt, o trabalhador
escolhido por Taylor para ilustrar a relação entre a gerência orientada por
princípios científicos da organização do trabalho e um trabalhador manual. Cabe
notar que mesmo entre os críticos de Taylor, Schmidt continua a ser visto como
um trabalhador sem inteligência, incapaz de perceber o sentido de suas
atividades.
Na narrativa de seu
encontro com Schmidt, Taylor, segundo Mike Rose, caracteriza aquele trabalhador
como alguém incapaz até de realizar boa parte de tarefas não especializadas. A
história toda, contada para justificar um controle radical das atividades de
produção, reflete certamente muitos preconceitos. Convinha rotular o
trabalhador braçal como alguém desprovido de saberes.
Schmidt é visto e
descrito por Taylor como uma máquina de carregar lingotes. Como possui certa
inteligência, apesar de limitada, pode ser instruído verbalmente. E é isso que
faz o analista, utilizando descrições de movimentos mecânicos para “programar a
máquina” do modo mais eficiente. Não importa nada como o trabalhador vê a
atividade, nem como a processa social e psicologicamente. Essa é a perspectiva
que decorre da visão de mão-de-obra no âmbito da
organização científica do trabalho.
Examinemos a questão a
partir de estudos sobre situações mais recentes acerca da natureza do trabalho
na sociedade industrial. O ideal taylorista, concretizado em medidas de
organização científica do trabalho na década de 1970, é expresso por Durand da
seguinte forma:
O operário não terá a
possibilidade de fazer o trabalho de acordo com sua idéia. Ensinar-lhe-ão a
melhor maneira de trabalhar. Os operários serão selecionados e treinados para
executar um trabalho no qual se especializarão “para que cada um possa
desempenhar o trabalho o mais complexo compatível com suas aptidões naturais,
da maneira mais rápida e com máxima eficiência”.
Este trecho mostra uma intenção de conduzir o trabalho em conformidade com determinações gerenciais. Mas implicitamente reconhece que o trabalhador poderia “fazer o trabalho de acordo com sua idéia”. Impedir que isso aconteça é o objetivo central do taylorismo. O comentário de Durand aponta ainda mais elementos que nos interessam numa discussão sobre aprender a trabalhar. Destaco-os a seguir:
Este trecho mostra uma intenção de conduzir o trabalho em conformidade com determinações gerenciais. Mas implicitamente reconhece que o trabalhador poderia “fazer o trabalho de acordo com sua idéia”. Impedir que isso aconteça é o objetivo central do taylorismo. O comentário de Durand aponta ainda mais elementos que nos interessam numa discussão sobre aprender a trabalhar. Destaco-os a seguir:
• Aos operários será
ensinada a melhor maneira de trabalhar.
• Os trabalhadores
serão ”especializados”.
• Complexidade do
trabalho será adequada à aptidão dos trabalhadores.
Quem decide a melhor
maneira de trabalhar são os analistas das atividades produtivas. Cabe lembrar
que tais melhores maneiras de trabalhar são definidas a partir de critérios de
produtividade alheios aos ritmos humanos. Essa circunstância foi retratada de modo
genial por Charles Chaplin em Tempos modernos. A especialização, no
contexto em que Durand a situa, é na verdade uma redução do
trabalho a seus elementos mais simples, mecânicos. Não é, como poderia sugerir
o uso mais comum da palavra, um aprofundamento de saber.
Finalmente, há a
questão da aptidão, baseada em crenças de que os seres humanos nascem com
certos dons que podem ser identificados e usados para fins produtivos. É bom
lembrar que, nas primeiras décadas do século passado, orientação e seleção profissional
eram as atividades mais populares de articulação entre educação e trabalho.
Daine Ravitch mostra como tal modo de ver as capacidades humanas articulou trabalho e formação profissional, sob o guarda-chuva da Escola Nova, justificando o caminho não acadêmico da educação para os filhos dos trabalhadores.
No Brasil, o exemplo mais claro de adoção de projetos de seleção e orientação profissional é o Idort, cujo projeto original era o de selecionar [cientificamente] a mão-de-obra mais adequada para as demandas da indústria nacional.
Daine Ravitch mostra como tal modo de ver as capacidades humanas articulou trabalho e formação profissional, sob o guarda-chuva da Escola Nova, justificando o caminho não acadêmico da educação para os filhos dos trabalhadores.
No Brasil, o exemplo mais claro de adoção de projetos de seleção e orientação profissional é o Idort, cujo projeto original era o de selecionar [cientificamente] a mão-de-obra mais adequada para as demandas da indústria nacional.
Aptidão dos
trabalhadores é uma expressão que esconde (ou desvela) o viés ideológico
justificador do rótulo de falta de inteligência ou de rudeza aos profissionais
que exercem ocupações manuais socialmente desvalorizadas.
Uma das conseqüências
do quadro que acabo de esboçar é a de que a formação profissional dos
trabalhadores passou a ser vista nos mesmos moldes que aqueles utilizados para
a análise do trabalho. Ou seja, os aspectos metodológicos do aprender a trabalhar
começaram a ser entendidos como aplicações daquela análise.
Essa abordagem revela um viés epistemológico: o de que é possível equiparar os resultados da análise objetiva do fazer com o processo pelo qual a ação se estrutura nas pessoas e comunidades de saber. Mas, como observa Broudy: “a estrutura lógica de um saber [supostamente descrita por certos procedimentos analíticos] pode não dar qualquer direção útil de como as pessoas descobrem e aprendem tal saber”.
Essa abordagem revela um viés epistemológico: o de que é possível equiparar os resultados da análise objetiva do fazer com o processo pelo qual a ação se estrutura nas pessoas e comunidades de saber. Mas, como observa Broudy: “a estrutura lógica de um saber [supostamente descrita por certos procedimentos analíticos] pode não dar qualquer direção útil de como as pessoas descobrem e aprendem tal saber”.
Uma das conseqüências
da crença epistemológica criticada por Broudy é certo tipo de solução
pedagógica que ignora os saberes construídos no trabalho e pelo trabalho. Tal
solução se diz científica e foi duramente criticada por André Gorz num texto que
deveria merecer mais atenção nos meios educacionais. O argumento central de
Gorz é o de que interesses alheios aos interesses dos trabalhadores utilizam a
“forma ciência” para fazer com que estes últimos aceitem sua suposta
ignorância.
Exemplo de uso da “forma ciência” para mostrar suposta inferioridade dos trabalhadores manuais é o modo pelo qual conteúdos de Química e Biologia são ensinados em cursos de cabeleireiros.
Exemplo de uso da “forma ciência” para mostrar suposta inferioridade dos trabalhadores manuais é o modo pelo qual conteúdos de Química e Biologia são ensinados em cursos de cabeleireiros.
Aspectos explicáveis
pelas duas ciências e presentes em técnicas dominadas por profissionais de
salões de beleza são convertidos num discurso
arcano (inintelígiveis) que leva o profissional a aceitar subordinação àqueles que dominam
saberes supostamente inacessíveis a quem não tem “formação científica”.
As propostas de orientações metodológicas baseadas em competências têm origem parecida com a pretensão de usar dados de análise das atividades produtivas como categorias orientadoras de uma pedagogia da formação profissional (HYLAND, 1994). Tais propostas desconsideram o saber que se constitui no e pelo trabalho. Quero sugerir um outro caminho. Um caminho que busca enfrentar o desafio de descobrir no interior do próprio trabalho bases capazes de fundar uma metodologia de formação profissional.
As propostas de orientações metodológicas baseadas em competências têm origem parecida com a pretensão de usar dados de análise das atividades produtivas como categorias orientadoras de uma pedagogia da formação profissional (HYLAND, 1994). Tais propostas desconsideram o saber que se constitui no e pelo trabalho. Quero sugerir um outro caminho. Um caminho que busca enfrentar o desafio de descobrir no interior do próprio trabalho bases capazes de fundar uma metodologia de formação profissional.
Para construir, ou re-construir, uma pedagogia baseada em saberes do trabalho, penso que é necessário examinar duas questões importantes:
I)matriz interpretativa do conhecimento, que insiste na dicotomia teoria-prática.
II)sentido que a obra tem na organização da atividade, na constituição de atos de intenção, nos modos pelos quais o trabalhador valora o que faz, na estruturação do saber que resulta em produção, na formação de identidades e re-produção da força de trabalho.
Uma proposta de constituição de uma pedagogia
inspirada pelo saber do trabalho, uma vez que as alternativas existentes pouco valorizam os saberes construídos
no e pelo trabalho como elementos constitutivos de uma metodologia de educação
profissional.
Armadilhas do par
teoria e prática
Não é incomum ouvir a
seguinte expressão: “é preciso explicitar os fundamentos teóricos da
prática”. Quem a diz ou ouve geralmente não mostra qualquer estranheza.
Aceita-a como descrição correta de uma relação entre duas instâncias
completamente distintas. E mais, julga que há uma subordinação da última à
primeira.
Eventos de ensino são organizados com base em tal relação, sempre prevendo aulas teóricas antes das aulas práticas que fundamentam. Raramente esse modo de pensar é problematizado.
Eventos de ensino são organizados com base em tal relação, sempre prevendo aulas teóricas antes das aulas práticas que fundamentam. Raramente esse modo de pensar é problematizado.
Durante cinco anos (de
1986 a 1991) trabalhei com docentes do Senac São Paulo – e eventualmente de
outras instituições – as questões de teoria e prática, utilizando como objeto
de estudo e discussão aulas demonstrativas, situações de ensino que reproduziam
fazer dos docentes e eram apresentadas a um coletivo constituído por seus pares
e por uma equipe supervisora. Certos episódios acontecidos
naquelas aulas de demonstração ilustram com muita clareza as armadilhas do par
teoria e prática. Narro um deles a seguir.
A aula de demonstração
tinha como tema central tipos de cabelo, uma categorização muito útil
para a tomada de decisão quanto à aplicação de produtos químicos em tinturas e
permanentes. As duas docentes fizeram um ótimo trabalho. Utilizaram diversos recursos
expositivos e criaram oportunidades participativas para todo o grupo.
Aprendemos (verbalmente) todas as definições e descrições de tipos de cabelo
que podem ser úteis no ofício de cabeleireiro. Toda a atividade foi
desenvolvida com textos e falas, seguindo passos sugeridos pelos melhores
livros de didática. Mas houve um senão. Em momento algum manipulamos cabelos para
classificá-los a partir da visão e do tato, dimensões sempre presentes nas
definições que nos foram oferecidas. Na discussão acontecida logo após a aula
de demonstração, perguntei às duas docentes porque elas não manipularam e nem
nos convidaram a manipular os cabelos dos participantes, uma vez que as trinta
todos ou quase todos os tipos de cabelos estudados. Obtive a seguinte resposta:
“esta é uma aula teórica; a manipulação dos cabelos só acontecerá na aula
prática”.
O caso aqui narrado revela o entendimento predominante do que é teoria e prática no campo didático-pedagógico. Teoria é verbo, explicação, discurso sistematizado. Qualquer experimentação, execução, manipulação está fora do jogo. Depois de bem assentada a teoria, supõe-se que os alunos estarão preparados para aplicá-la. E a aplicação constitui a prática, um fazer guiado pela teoria. Uma prática sem teorização prévia é um ato desprovido de inteligência. Em si mesmo, o fazer não é inteligente.
O caso aqui narrado revela o entendimento predominante do que é teoria e prática no campo didático-pedagógico. Teoria é verbo, explicação, discurso sistematizado. Qualquer experimentação, execução, manipulação está fora do jogo. Depois de bem assentada a teoria, supõe-se que os alunos estarão preparados para aplicá-la. E a aplicação constitui a prática, um fazer guiado pela teoria. Uma prática sem teorização prévia é um ato desprovido de inteligência. Em si mesmo, o fazer não é inteligente.
Entendo que a resposta das docentes é um retrato fiel do pensamento hegemônico
sobre relações de teoria e prática no campo do ensino. Em outro trabalho, já
sugeri abandono do par teoria e prática como referência explicativa para
conteúdos de aprendizagem no campo da educação profissional (BARATO, 2003).
Mas
tal sugestão não é fácil de ser implementada. As raízes de tal dicotomia são
profundas e baseadas numa tradição filosófica respeitável. Como observa Mark
Johson, uma das dificuldades da crítica ao dualismo aqui abordado é a de que
nos falta terminologia adequada ao propor um novo modo de ver. Tento esclarecer
o ponto com o seguinte comentário de Johson:
A idéia fundamental de uma fronteira entre mente e corpo – e com ela, as
dicotomias que a acompanham, como cognição/emoção, fato/valor,
conhecimento/imaginação e pensamento/sentimento – está tão profundamente
enraizada nos nosso modos ocidentais de pensar que nos é quase impossível
evitar o enquadramento de nosso modo de entender mente e pensamento
dualisticamente. (...). Ao formularmos a questão “Corpo e mente são um ou
dois?”, enquadramos toda a nossa concepção da relação de modo dualístico, uma
vez que ela pressupõe que dois diferentes tipos de coisas precisam estar
juntos, de alguma forma, como uma. Conseqüentemente, alguém que está procurando
encontrar um modo de reconhecer a unidade daquilo que Dewey chamou de “corpo-mente”
não contará com o adequado vocabulário para capturar a unidade primordial e não
consciente da pessoa humana.
Como se vê no texto
citado, os pares antitéticos cuja expressão original é mente/corpo, aparecem de
modos muito variados. Assim, às duplas dicotômicas listadas pelo autor podemos
acrescentar outras duas, teoria/prática, conhecimento/habilidade, mais freqüentes
em conversas sobre ensino e aprendizagem.
Em todos os pares dicotômicos, as partes componentes são de natureza completamente diferente. Johson diz isso de maneira mais elegante, afirmando que tais pares revelam um fosso ontológico entre mente e corpo. Mas o problema não cessa no nível da caracterização do ser de cada uma das partes. Vai mais longe. Sugere subordinação da segunda (corpo, prática, habilidade) à primeira (mente, teoria, prática).
Em todos os pares dicotômicos, as partes componentes são de natureza completamente diferente. Johson diz isso de maneira mais elegante, afirmando que tais pares revelam um fosso ontológico entre mente e corpo. Mas o problema não cessa no nível da caracterização do ser de cada uma das partes. Vai mais longe. Sugere subordinação da segunda (corpo, prática, habilidade) à primeira (mente, teoria, prática).
A meu ver, a proposta
mais interessante de enfrentamento do dualismo com o qual estamos nos
defrontando é a análise desenvolvida no texto Konwing how and knowing that,
segundo capítulo de The concept of mind, do filósofo inglês Gilbert Ryle. Destaco a seguir alguns
pontos das observações feitas por Ryle. De acordo com o filósofo inglês, na tradição do pensamento ocidental, a
mente é definida por operações que resultam em proposições sistematicamente
organizadas para determinar a verdade.
Assim, quando falamos do intelecto ou dos poderes intelectuais, referimo-nos primordialmente às operações que constituem a teorização. Por isso, as atividades teóricas que melhor exemplificam nossas capacidades mentais são a Matemática e as Ciências Naturais.
Todos os saberes acabam sendo avaliados a partir de tais ciências, pois entende-se que a capacidade de obter o conhecimento das verdades é a propriedade definidora da mente. Nessa perspectiva: Outras capacidades humanas podem ser classificadas como mentais apenas se elas mostrarem que são pilotadas pelo entendimento das proposições verdadeiras. Ser racional é ser capaz de reconhecer as verdades e as conexões entre elas. Agir racionalmente é, portanto, ter as dimensões não intelectuais controladas pela apreensão das verdades sobre a direção da vida.
Assim, quando falamos do intelecto ou dos poderes intelectuais, referimo-nos primordialmente às operações que constituem a teorização. Por isso, as atividades teóricas que melhor exemplificam nossas capacidades mentais são a Matemática e as Ciências Naturais.
Todos os saberes acabam sendo avaliados a partir de tais ciências, pois entende-se que a capacidade de obter o conhecimento das verdades é a propriedade definidora da mente. Nessa perspectiva: Outras capacidades humanas podem ser classificadas como mentais apenas se elas mostrarem que são pilotadas pelo entendimento das proposições verdadeiras. Ser racional é ser capaz de reconhecer as verdades e as conexões entre elas. Agir racionalmente é, portanto, ter as dimensões não intelectuais controladas pela apreensão das verdades sobre a direção da vida.
Na dicotomia criticada
por Ryle, transparece o entendimento de que as realizações concretas dos seres
humanos são guiadas por uma mente que as concebe, analisa e guia. O corpo, nesse sentido, é um instrumento
que mecanicamente cumpre ordens de um piloto alojado num centro de controle
chamado mente.
Ou seja, a dita dicotomia tem como base o que o filósofo inglês chama de “o fantasma da máquina”. Esse mito fundamenta crença de filósofos e leigos. Ambos (leigos e filósofos) tendem a tratar as operações mentais como exclusivamente intelectuais, considerando que a ocupação principal da mente é a busca de respostas para questões.
Outras ocupações da mente são meramente aplicações das verdades ou até mesmo desvios destas. Neste último caso, erros de execução são atribuídos à pobreza teórica. Para encaminhar a discussão em outros termos, Ryle sugere que o saber deve ser visto em duas dimensões completamente distintas e independentes:
A)saber como (knowing how)
O saber como é constituído por processos de execução que dão fluência à ação
B)saber que (knowing that)
O saber que é constituído por proposições que explicam as coisas, definem-nas, estabelecem critérios de verdade.
Em muitas construções teóricas o fazer precede a teorização e é necessário para que ela ocorra.
Ou seja, a dita dicotomia tem como base o que o filósofo inglês chama de “o fantasma da máquina”. Esse mito fundamenta crença de filósofos e leigos. Ambos (leigos e filósofos) tendem a tratar as operações mentais como exclusivamente intelectuais, considerando que a ocupação principal da mente é a busca de respostas para questões.
Outras ocupações da mente são meramente aplicações das verdades ou até mesmo desvios destas. Neste último caso, erros de execução são atribuídos à pobreza teórica. Para encaminhar a discussão em outros termos, Ryle sugere que o saber deve ser visto em duas dimensões completamente distintas e independentes:
A)saber como (knowing how)
O saber como é constituído por processos de execução que dão fluência à ação
B)saber que (knowing that)
O saber que é constituído por proposições que explicam as coisas, definem-nas, estabelecem critérios de verdade.
Em muitas construções teóricas o fazer precede a teorização e é necessário para que ela ocorra.
Esses conhecimentos de saber
que guardam relação com decisões que explicam cuidados (saber como)
na manutenção de vias férreas, por exemplo, fica parecendo que a
teoria precede e fundamenta a prática. Esta, porém, é uma visão que ignora
história e psicologia na elaboração de saberes ao qual damos o nome de teoria.
Ryle aborda a questão mostrando como um dos exemplos clássicos do saber teórico
– a formulação de regras da lógica por Aristóteles – conheceu um caminho que
começa pela prática:
Regras do raciocínio
correto foram extraídas originariamente por Aristóteles, embora os homens
soubessem como evitar e detectar falácias antes que aprendessem as lições do
filósofo grego, assim como conduzem normalmente suas argumentações sem fazer
qualquer referência interna às fórmulas aristotélicas [coisa, aliás, que o
próprio filósofo fazia].
Eles não planejam seus argumentos antes de
construí-los. Na verdade, se tivessem que planejar o que pensar, antes de
pensar, nunca chegariam a pensar; pois tal plano não poderia ser planejado. Os
princípios da lógica (saber que) não precedem as estratégias de raciocínio (o
saber como). E, depois de estabelecidos, não precisam necessariamente estar
presente nas operações do pensamento.
Ryle, no capítulo aqui mencionado,
analisa diversos exemplos de execução para mostrar que o saber como não
está subordinado ao saber que. Depois de citar diversos profissionais e
seus respectivos saberes no campo da execução, o autor apresenta as seguintes
conclusões:
O boxeador, o
cirurgião, o poeta e o vendedor aplicam seus critérios especiais no desempenho
de suas tarefas específicas, uma vez que estão tentando fazer as coisas certas;
eles são elogiados como esclarecidos, habilidosos, inspirados ou sagazes não
pelos modos como consideram, se é que consideram de alguma forma, prescrições
para conduzir seus desempenhos específicos, mas pelos modos como conduzem os próprios
desempenhos. Se o boxeador planeja ou não suas manobras antes de executá-las,
sua inteligência no ringue é julgada pela maneira como ele luta. Se for um
Hamlet do ringue, ele será condenado como um lutador inferior, embora talvez
seja considerado um teórico ou crítico brilhante. A sagacidade na luta aparece
em aplicar ou evitar golpes, não em aceitar ou rejeitar proposições a respeito
de golpes, assim como a habilidade de raciocinar é exibida na construção de argumentos
válidos e a identificação de falácias, não declarações das fórmulas dos
lógicos. Nem a habilidade do cirurgião funciona em sua língua expressando
verdades médicas, mas somente em suas mãos fazendo o movimento correto.
Creio
que minhas referências à obra de Ryle já tenham sido suficientes para mostrar
que subordinação daquilo que a linguagem
comum chama de prática á teoria é um engano. Saber como é uma
dimensão de conhecimento que não depende de supostos fundamentos (teóricos) que
a precedem e fundamentam. Esse modo de ver os saberes é importante em
educação. Ele nos permite formular uma orientação aparentemente simples: explicações bem estruturadas não são
garantia de execuções fluentes e corretas.
Estas últimas requerem uma
aprendizagem própria, pois o saber que lhes é intrínseco não é aplicação da
teoria, mas uma dimensão de conhecimento cuja base é um entendimento [geralmente
não-verbal] da ação. Convém recorrer a um exemplo para ilustrar a discussão desenvolvida
neste item. Na época em que tentava elaborar uma explicação que mostrasse o status
epistemológico da técnica (saber como), falei de meus estudos para
um amigo completamente afastado de discussões sobre educação profissional.
Depois de me ouvir, ele contou uma história esclarecedora.
Nos finais de semana,
meu amigo supervisionava obras de uma pequena empresa que construía casas
populares. Numa ocasião, viu um trabalhador colocando massa num teto de lajota.
A operação parecia simples. Com uma colher de pedreiro, o trabalhador pegava
certa quantidade de massa e a lançava á superfície do teto. Na operação tinha o
cuidado de manter uniformidade na distribuição da massa. Quando havia uma
quantidade suficiente de massa na superfície, o pedreiro utilizava uma
desempenadeira para espalhar o material, dando acabamento àquela parte do teto.
Meu amigo conseguiu articular toda essa explicação e julgou-se apto a fazer o
serviço. Resolveu ajudar o profissional. Pegou uma colher de pedreiro, recolheu
a quantidade adequada de massa e lançou-a ao teto. Mas, para sua surpresa, a
massa voltou atingindo seu rosto. Ao contrário do que acontecia com a ação do
pedreiro, o material não se fixava na superfície da lajota. Meu amigo confundiu
explicação com execução. A primeira era um conhecimento ao qual Ryle deu o nome
de saber que, a segunda, saber como. Uma e outra exigem aprendizagens
distintas. Uma e outra são modos de conhecer com identidade própria. Meu amigo
entendeu bem a distinção, tanto que me contou a história que acabo de resumir.
O uso e aceitação
acrítica do par antitético teoria/prática tem conseqüências importantes em
diversos planos. No plano didático, subordina execução a explicações que
supostamente são o conhecimento que lhe dá sustentação, repercutindo a crença à
qual Ryle apelidou de o mito do fantasma da máquina. No plano de análise do trabalho,
desvaloriza o saber fazer, caracterizando o trabalhador manual como um
executor de atividades cujo sentido ignora.
Anos atrás, tomei consciência
desses papéis da utilização das categorias teoria e prática como definidoras do
saber do trabalho ao estudar a formação de cabeleireiros. No plano didático,
descobri que uma proposta de aumentar a carga horária “teórica” (ensino de
disciplinas científicas relacionadas com profissão) teria como resultado o
empobrecimento da formação profissional, pois a conseqüente diminuição da parte
prática (repertório de técnicas básicas do profissional de salões de beleza)
privaria os formandos de domínios importantes de um saber como essencial
em negociações de relações de trabalho.
No plano de análise do trabalho, as declarações
de um proprietário de uma grande cadeia de salões indicavam que o uso do par
teoria e prática era muito conveniente para promover modos de administração da
“mão-de-obra” com prejuízos evidentes para esta. A declaração a que me refiro
foi a seguinte: “a escola precisa formar bem os profissionais em termos de
competências sociais e científicas, nós nos encarregaremos da formação técnica,
de acordo com necessidades da empresa, demandas de mercado, organização do trabalho
e talentos dos profissionais”.
Tal declaração sugeria um controle de acesso
ao saber técnico que lembra os mecanismos de barreiras de apropriação de
técnicas de corte de carne aos quais foram submetidos os aprendizes de açougueiro
numa rede de supermercados norte-americanos. Neste último caso, narrado por Lave
e Wenger, o programa de aprendizagem em serviço não permitia que os aprendizes
ingressassem na área em que os cortes eram executados. A formação ficava
reduzida à parte teórica e à acomodação da carne já cortada a embalagens
padrão.
Tracei até aqui um
panorama que indica necessidade de rever o uso dos termos teoria e prática como
instâncias de definição de conteúdos da educação no campo da formação
profissional. Além disso, penso que deixei caracterizado o engano de subordinar
o saber técnico (saber como) ao saber teórico (saber que). O
abandono do mencionado par dicotômico muda modos de ver educação profissional.
E muda também modos de ver saberes que se constituem no e pelo trabalho. Toda
essa mudança requer novas maneiras de organizar propostas de ensino no campo da
formação profissional. Acredito que metodologias que utilizem a obra como
princípio orientador nesta direção podem ser uma saída interessante.
"penso que deixei
caracterizado o engano de subordinar o saber técnico (saber como) ao saber
teórico (saber que). O abandono do mencionado par dicotômico muda modos de ver educação
profissional. E muda também modos de ver saberes que se constituem no e pelo
trabalho"
Há sempre no horizonte
aquele orgulho por uma obra bem-feita que exemplifiquei no início deste artigo
com um episódio de minha infância. Mike Rose faz um registro desse fenômeno em
seu estudo sobre o saber no trabalho. Em contatos com eletricistas, ele repara
que estes insistem em acabamentos bem-feitos, não apenas corretos, embora todo
o trabalho vá ficar oculto dentro de paredes. Não importa, dizem-lhe seus
interlocutores, a obra, mesmo que oculta, tem uma ”assinatura” de quem a fez.
Este modo de ver o resultado da atuação profissional sugere que a obra orienta
a produção de objetos do trabalho e de identidades de quem a faz. Charles
Keller e Janet Dixon Keller enfatizam a importância da obra num estudo que
fizeram sobre o ofício de ferreiro. Para bem entender o trabalho, um dos pesquisadores,
Charles, aprende o ofício e produz algumas peças que constituem desafios que qualquer profissional
da área quer enfrentar.
Em seus estudos, os autores querem entender uma
dinâmica cuja descrição é que a segue:
No caso do trabalho na
forja, o conhecimento vem à tona na solução de problemas ao se produzir um
artefato. Conhecimentos relevantes incluem a imagem interna do objeto ou o
objeto da produção, e a conceitualização da seqüência produtiva por parte do
ferreiro. A contraparte externa ao conhecimento é a ação concreta no mundo que
produz um fim material.
Obra supõe um
engajamento do trabalhador com o resultado de seu trabalho. Mas, além disso,
ela supõe também tramas de reconhecimento na comunidade dos praticantes de um
mesmo ofício, apreciação estética que se constrói na história, reconhecimento
de que o resultado do trabalho tem um significado social. Nem sempre esses
aspectos são explicitados verbalmente pelo trabalhador; às vezes, o mesmo é
incapaz de reconhecê-los em declarações formais construídas como saber que.
As conseqüências disso para a educação profissional geram confrontos
significativos: alunos que se comprometem com a beleza da obra na produção não
conseguem ver conexões do que fazem com idéias de estética ou discursos sobre
responsabilidade social [sobretudo quando apresentados no formato de disciplinas
“teóricas” do currículo].
É preciso examinar mais
conseqüências da orientação para a obra na direção do saber do trabalho. Mas
antes disso, convém visitar uma alternativa concorrente, o saber baseado em competências.
Para efeitos de comparação, listo aqui algumas descrições que definem
competências essenciais, de acordo com uma síntese que elaborei a partir de
estudos sobre documentação produzida por analistas do trabalho no
Canadá.
Ler
textos.
Usar
documentos.
Escrever.
Lidar
com números.
Comunicar-se
oralmente.
Utilizar
as seguintes habilidades de pensamento: resolver problemas, tomar decisões,
organizar e planejar tarefas de trabalho, fazer usos especiais da memória,
encontrar informação.
Trabalhar
com os outros.
Utilizar
computadores.
Aprender
continuamente.
Talvez
meu resumo contenha vieses pessoais. Por isso, acho conveniente reproduzir um
pequeno segmento de texto no qual um autor insuspeito descreve competências
(JESSUP, 1991)29:
Unidade de competência para apoio em cuidado de saúde
Elemento: prestar assistência para minimizar dor e desconforto
do cliente.
Critérios
de desempenho:
-
o cliente será encorajado a expressar sentimentos de desconforto e dor, e será
encorajado a usar métodos de auto-ajuda para controlá-los de acordo com o plano
de cuidados.
-
o cliente é assistido para manter uma posição confortável consistente com o
plano de cuidado ...
Não
interessa aqui examinar conteúdo das competências descritas. O que interessa é
verificar como o trabalho é entendido. Em ambos os casos, os conteúdos do
trabalho são apresentados como aspectos de capacidades individuais a serem
utilizadas de acordo com certos planos de produção. Toda a trama social
desaparece. O sentido de obra já não está mais no horizonte. O saber do
trabalho fica reduzido a capacidades individuais.
Capacidades estas, aliás, que
são apontadas como orientadoras de atividades de aprendizagem no capítulo
inicial da obra de Jessup. Voltemos á obra. Como já disse, ela pode orientar
percursos de formação profissional. Mas para que isso possa ser feito de maneira
consistente, precisamos de referências teóricas que a situem dentro de um
quadro explicativo do saber do trabalho. A melhor candidata para isso é a
Teoria da Atividade, uma abordagem da experiência humana que leva em
consideração a dinâmica das relações entre sujeito e objeto.
Uma primeira
aproximação dessa perspectiva nos é apresentada por Kaptelinin e Nardi, que
mostram que há uma unidade entre consciência e ação em produtos gerados por
interações do indivíduo com pessoas e
artefatos em
contextos da vida cotidiana.
Atividades
são grávidas de (1)intencionalidade, mesmo que esta última não seja explicitada
pelos agentes humanos. Essa flexão na relação sujeito ↔ objeto explica, por
exemplo, a busca de sentido presente em situações de trabalho nas quais
procurou-se separar execução de concepção. O (2)princípio da assimetria entre pessoas
e coisas decorre da intencionalidade.
Artefatos, mesmo quando atuam como
agentes, não se orientam intencionalmente,
com imaginação e reflexão. Talvez meu resumo das idéias apresentadas
pelos autores não seja inteiramente fiel, por isso julgo necessário reproduzir aqui
o comentário final de Kaptelinin e Nardi sobre os dois primeiros princípios:
Na
Teoria da Atividade as pessoas atuam com tecnologia; as tecnologias são
duplamente planejadas e usadas num contexto onde há pessoas com intenções e
desejos. As pessoas atuam como sujeitos no mundo, construindo e concretizando
suas intenções e desejos como objetos. (3)O
princípio do desenvolvimento humano sugere que qualquer atividade humana
pertence a um ciclo histórico, e por isso precisa ser entendida dentro do
processo sociocultural que a constitui. Tal conclusão já anuncia o quarto
princípio, aquele que nos lembra que (4)as atividades humanas dependem de certas configurações
sociais e culturais.
Em
termos gerais, uma atividade pode ser definida como qualquer processo no qual
um sujeito está em interação com o mundo. É preciso ressaltar que, no âmbito da
Teoria da Atividade, a categoria mais básica a ser considerada é atividade. É a análise dela que nos
permite entender de modo apropriado sujeito e objeto.
Em outras palavras, em termos analíticos, atividade tem precedência sobre sujeito e objeto. Importa, portanto, entender a dinâmica da atividade para entender pessoas e coisas. Esse modo de ver contraria visões de senso comum que julgam ser preciso entender pessoas e coisas para, em seguida, entender relações entre estes dois pólos.
Em outras palavras, em termos analíticos, atividade tem precedência sobre sujeito e objeto. Importa, portanto, entender a dinâmica da atividade para entender pessoas e coisas. Esse modo de ver contraria visões de senso comum que julgam ser preciso entender pessoas e coisas para, em seguida, entender relações entre estes dois pólos.
Mas é a
atividade que é fonte de desenvolvimento do objeto e do sujeito. Voltemos à
obra mais uma vez. Que lugar ela ocupa numa abordagem que utiliza como
referência explicativa a Teoria da Atividade? Entendo que podemos definir obra
nesse contexto como objeto, ou seja, como um lado do pólo sujeito ↔ objeto que tem
característica de motivo [um objeto que corresponde a certa necessidade do
sujeito].
A obra, assim, não é apenas um produto que resulta de processos de produção. Ela é um alvo que mobiliza o sujeito em busca da satisfação de certa necessidade. Tal mobilização passa por saberes socialmente construídos, uso de ferramentas e divisão do trabalho. Passa por efetivação de intenções, julgamentos, valores.
A obra, assim, não é apenas um produto que resulta de processos de produção. Ela é um alvo que mobiliza o sujeito em busca da satisfação de certa necessidade. Tal mobilização passa por saberes socialmente construídos, uso de ferramentas e divisão do trabalho. Passa por efetivação de intenções, julgamentos, valores.
Para
completar um resumo sobre Teoria da Atividade, seria necessário examinar o
papel das ferramentas, divisão do trabalho, componentes de uma atividade etc.
Tal exame ocuparia tempo e espaço não disponíveis neste artigo. Acho, porém,
que os delineamentos
aqui
elaborados com base em Kaptelinin e Nardi já são suficientes para mostrar uma
face importante da obra em atividades produtivas.
Resta explorar mais uma possibilidade explicativa que pode nos ajudar a entender o sentido da obra: a idéia de comunidades de prática. Lave e Wenger sugerem que a aprendizagem é uma dimensão da prática social. Essa definição confronta-se com o entendimento do aprender como internalização de saberes descobertos, transmitidos ou experenciados. Willian F. Hanks, na apresentação da obra em tela, sumariza o entendimento de Lave e Wenger sobre aprendizagem da seguinte forma:
Resta explorar mais uma possibilidade explicativa que pode nos ajudar a entender o sentido da obra: a idéia de comunidades de prática. Lave e Wenger sugerem que a aprendizagem é uma dimensão da prática social. Essa definição confronta-se com o entendimento do aprender como internalização de saberes descobertos, transmitidos ou experenciados. Willian F. Hanks, na apresentação da obra em tela, sumariza o entendimento de Lave e Wenger sobre aprendizagem da seguinte forma:
Aprender
é um processo que acontece dentro de uma moldura de participação, não numa
mente individual. Isso significa, entre outras coisas, que o aprender é mediado
por diferenças de perspectivas entre os co-participantes. É a comunidade, ou
pelo menos aqueles participantes do contexto de aprendizagem, quem “aprende”
nesta definição.
Aprender,
como deve ser, é distribuído entre co-participantes, não um ato pessoal. Depois
de definir aprendizagem como uma ocorrência social, como desenrolar de um saber
socialmente distribuído, Lave e Wenger introduzem o conceito de participação
periférica legitimada para caracterizar os caminhos de saber que aprendizes vão
percorrendo em comunidades de prática.
Num relato sobre a vida de jovens
aprendizes de alfaiates entre os Vai e Gola da África Ocidental, os autores
enfatizam que, desde o início, os novatos participam da obra, seja limpando o local
de trabalho, seja realizando pequenos trabalhos –
pregar botões, por exemplo – diretamente relacionados com a produção. Esse modo
de aprender
– participando da obra – é uma característica da aprendizagem nas corporações
de ofício.
Mas os autores reparam que mesmo em situações em que estão ausentes
as relações de produção no interior de uma corporação, os princípios gerais da
participação periférica legitimada permanecem. Sugerem, portanto, que tal
dinâmica é própria do trabalho e outras práticas sociais nas quais a construção
social de saberes é uma necessidade. Em meus estudos sobre o curso de
Cabeleireiro no Senac de São Paulo, constatei diversas situações que poderiam
ilustrar princípios da Teoria da Atividade ou aprendizagem em comunidades de
prática.
Reparei que, apesar da orientação pedagógica oferecida pela
Instituição, os profissionais docentes da área reproduziam, sobretudo nos
salões de beleza [empresas pedagógicas], práticas muito parecidas com aquelas
que existiam nas oficinas dos velhos artesões. Os educadores do Senac, eu
incluso, costumavam ver tais práticas como sintomas de falta de planejamento e
de ignorância didática. Achavam que o ambiente de aprendizagem deveria ser
organizado de acordo com um plano de ensino orientado pela progressão dos
alunos na elaboração do saber necessário ao trabalho como cabeleireiro.
A
situação se repetia em outros cursos no Senac e em outras instituições de
educação profissional. Educadores com formação acadêmica teimavam em organizar
os curso orientando-se por análises do trabalho que davam nova forma aos ideais
de racionalidade defendidos por Taylor. É interessante notar que tais
educadores, eu incluso novamente,
faziam uma crítica severa ao taylorismo.
Penso que as sugestões presentes nesta
seção ainda são muito preliminares em termos de estudo da obra como instância
que orienta
o saber no trabalho. Mais investigações sobre Teoria da Atividade e comunidades
de prática são ainda necessárias para que possamos construir um quadro
explicativo claro e sólido sobre o sentido da obra.
Mas já é possível indicar algumas pistas para a elaboração de propostas alternativas à pedagogia das competências. Entre tais pistas, destaco:
Mas já é possível indicar algumas pistas para a elaboração de propostas alternativas à pedagogia das competências. Entre tais pistas, destaco:
• O trabalhador,
mesmo em situações em que o trabalho foi empobrecido e é controlado por
analistas ou gestores distantes da execução, continua a identificar-se com o
sentido da obra.
• A obra concretiza
valores no âmbito estético e ético. Ela compromete o trabalhador com
sentimentos de beleza e responsabilidade pelo resultado de seu trabalho.
• Celebração
da obra é um ato social que envolve comunidade de
prática e família do trabalhador.
• A obra pode ser
equiparada ao objeto da Teoria da Atividade; e como tal ela é motivo que
corresponde a alguma necessidade do trabalhador.
• Na obra
concretizam-se os atos de intencionalidade que permeiam a atividade do
trabalhador.
• Demandas presentes
na relação sujeito ↔
objeto na atividade vão
construindo socialmente os saberes necessário para a concretização da obra.
• Aceito por uma
comunidade de prática, o aprendiz, desde o início, participa da elaboração da
obra.
• O saber no
trabalho vai se constituindo na medida em que execuções se concretizam nas
relações sujeito ↔objeto.
• No âmbito da
atividade, o conhecimento não se estrutura
como pré-requisito para a execução, ele se estrutura na medida em
que a execução avança.
Embora a relação de pistas que listei não seja completa, julgo-a suficiente para o convite de formular uma proposta metodológica de organização de ambientes de aprendizagem orientados para a obra.
Embora a relação de pistas que listei não seja completa, julgo-a suficiente para o convite de formular uma proposta metodológica de organização de ambientes de aprendizagem orientados para a obra.
Obra como referência
metodológica em educação profissional
Visões orientadas por conhecimentos
declarativos, organizados como proposições que estabelecem verdades dentro de certo
campo de saber, sugerem eventos de aprendizagem que sigam certa progressão.
Possivelmente começando com teorias que darão sustentação a praticas
subseqüentes. O pressuposto de tais visões é o de que o conhecimento é uma
construção individual de repertórios para serem aplicados de acordo com determinadas
demandas. Mesmo a pedagogia das competências não escapa deste script.
Se quisermos organizar ambientes de
aprendizagem de modo a utilizar saberes construídos no e pelo trabalho será
preciso operar uma mudança radical. Uma possibilidade nessa direção é considerar a obra como princípio
organizador das atividades de aprendizagem em programas de formação
profissional. O ponto de partida, no caso, não seria perguntar que
conhecimentos, competências e habilidades o trabalhador precisa dominar. O ponto de partida seria perguntar que
obras são valorizadas pelas comunidades de prática onde se desenvolve o
trabalho do profissional que se pretende formar.
Em termos da Teoria da
Atividade, tal proposta partiria do objeto da atividade, do motivo. Tal qual em
comunidades de prática constituídas em ambientes de trabalho, programas de
formação profissional com a orientação aqui sugerida voltar-se-ão para obras
bem-feitas, bem acabadas. Numa proposta como essa, não cabem obras executadas
apenas para efeitos pedagógicos.
Desde o início, o aprendiz estaria comprometido com obras reconhecidamente “profissionais”. Isso não significa exigência de perfeição, mas oportunidade para integrar uma comunidade de prática com atos de participação periférica legitimada. Em outras palavras, desde o início o aprendiz se integraria na produção (na atividade). Essa providência garante experimentar “construção social do conhecimento”.
Desde o início, o aprendiz estaria comprometido com obras reconhecidamente “profissionais”. Isso não significa exigência de perfeição, mas oportunidade para integrar uma comunidade de prática com atos de participação periférica legitimada. Em outras palavras, desde o início o aprendiz se integraria na produção (na atividade). Essa providência garante experimentar “construção social do conhecimento”.
Programas orientados pela obra mudariam
substancialmente a organização de currículos e dinâmicas de
ensino-aprendizagem. Entre as mudanças que tal abordagem poderia provocar,
destaco as que seguem:
• As tradicionais turmas homogêneas seriam substituídas por equipes de trabalho
cujos participantes teriam diferentes níveis de domínio das técnicas e
operações requeridas pelas obras.
• Princípios de
divisão do trabalho seriam utilizados para atribuir tarefas distintas aos
membros das equipes de produção.
• Os docentes
atuariam como mestres, propondo obras, instruindo os participantes, avaliando
resultados parciais e oferecendo orientações, executando – para efeitos
demonstrativos – partes do trabalho.
• Participantes
de todos os níveis negociariam, por meio da execução, significados dos saberes
necessários ao alcance da obra.
• Avaliações de
aprendizagem aconteceriam como julgamentos de operações no processo e na
apreciação da obra pronta. Tais julgamentos seriam efetuados tanto por
aprendizes
como pelo mestre.
• Os “cursos” não
teriam data de início e término. A qualificação ou habilitação dos alunos
ocorreria de acordo com domínio de processos necessários à produção das obras
que integrariam o “currículo”.
Listei apenas algumas das conseqüências
de uma abordagem educacional orientada por obras. Percebe-se que as mudanças
seriam profundas. Ao mesmo tempo, fica claro que a implantação de tal proposta
exigiria um aprofundamento de estudos muito mais completos que as sugestões
reunidas neste artigo.
As narrativas de experiências de formação profissional de carpinteiros,
eletricistas, soldadores, cabeleireiros e garçonetes, feitas por Mike Rose em seu indispensável O saber no trabalho, mostram isso com clareza. Em todas as
situações examinadas pelo citado educador, a obra é o princípio orientador das
propostas formativas de trabalhadores.
Os docentes envolvidos em tais propostas nem sempre sabem explicar suas decisões de ensino aprendizagem. Mas eles sabem que obra é o objeto central do saber do trabalho.
Os docentes envolvidos em tais propostas nem sempre sabem explicar suas decisões de ensino aprendizagem. Mas eles sabem que obra é o objeto central do saber do trabalho.
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