Por DANTE HENRIQUE
MOURA. DOMINGOS LEITE
LIMA FILHO e MÔNICA RIBEIRO
SILVA
Trabalho,
formação humana e educação escolar sob a égide do capital: algumas aproximações
Neste texto, refletimos
sobre a formação humana na sociedade brasileira, principalmente na fase de
escolarização que corresponde ao final da educação básica: o ensino médio. A
questão é complexa, pois a problemática da formação humana não nasce nem se
encerra no sistema educacional.
É a necessidade vital de produzir a própria
existência por meio do trabalho o determinante para que os seres humanos
dominem os conhecimentos e as práticas sociais necessários a essa produção, ou
seja, é preciso que sejam formados, não obrigatoriamente em instituições
especificamente destinadas a esse fim.
Por isso, a escola apresentou-se
“inicialmente ‘inessencial’, um luxo e não uma necessidade primária”
(Manacorda, 2007, p. 23). A formação é produto das relações sociais e
de produção, e a escola, espaço institucionalizado onde também existe parte
dela, é fruto de tais relações.
Dessa forma, não foi essencial, inicialmente,
mas um luxo, porque foi concebida para atender
aos interesses de uma determinada classe, a dos dirigentes. Por ter em sua gênese
esse corte de classe e não da totalidade social, a escola tende a descolar-se
da sociedade, ao mesmo tempo em que reflete suas contradições.
Na atual fase de
desenvolvimento das forças produtivas, ancoradas na ciência, na técnica e na
tecnologia, sob o domínio do sistema capital, a escola vem tornando-se “essencial” à sociabilidade humana.
Precisamente por isso, seu caráter classista agudiza-se. Isso porque “a necessidade de valorização do capital, a
partir da propriedade privada dos meios de produção” (Kuenzer, 2010, p. 861)
demanda a divisão “entre trabalho intelectual e manual como estratégia de
subordinação, tendo em vista a valorização do capital” (idem, ibidem).
Em decorrência, a divisão social e técnica do trabalho
constitui-se estratégia fundamental do modo de produção capitalista, fazendo com que seu metabolismo
requeira um sistema educacional classista e que, assim, separe trabalho
intelectual e trabalho manual, trabalho simples e trabalho complexo, cultura
geral e cultura técnica, ou seja, uma escola que forma seres humanos
unilaterais, mutilados, tanto das classes dirigentes como das
subalternizadas.
É claro que isso não ocorre de forma mecânica, mas em uma relação
dialética em razão das forças que estão em disputa e que, em alguma medida,
freiam parte da ganância do capital.
Politecnia: confrontos conceituais
Visão de Marx
Importa-nos esclarecer
elementos centrais no conjunto da obra de Marx e de Marx e Engels no que
concerne às suas produções no campo da educação. Um deles é o fato de que não
trataram do tema educação, ensino ou formação profissional isoladamente.
Ao
contrário, todas as reflexões inserem-se na discussão sobre como homens,
mulheres, jovens e crianças, especialmente da classe trabalhadora, produzem a
vida em meio às relações sociais e de produção, particularmente sob o
capitalismo.
Foi em decorrência da
impossibilidade de “entender a problemática educacional em si mesma” (Lombardi,
2010, p. 319), devido a sua imbricação com o modo de os seres humanos produzirem
a própria existência, que Marx e Engels “acabaram formulando a necessária união
da instrução com o trabalho material” (idem, ibidem), eixo condutor de
suas formulações no campo da educação.
Marx, nas Instruções
para os delegados do Conselho Geral Provisório da Associação Internacional
dos Trabalhadores, de agosto de 1866, ao discutir a forma abominável como
o trabalho infantil e juvenil era desenvolvido na fábrica capitalista, defende
a necessidade de impor limites a esse tipo de trabalho e afirma a defesa da
união entre educação e trabalho produtivo em outra perspectiva. Nessa mesma
obra, Marx (1982a, s.p., grifo do original) assevera que a educação da classe
trabalhadora deve compreender:
1)Primeiramente: Educação
mental [intelectual].
2) Educação física,
tal como é dada em escolas de ginástica e pelo exercício militar.
3)Terceiro: Instrução
tecnológica, que transmite os princípios gerais de todos os processos de
produção e, simultaneamente, inicia a
criança e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos
os ofícios.
Ao tratar de educação
intelectual, física e tecnológica, Marx
está claramente sinalizando para a formação integral do ser humano, ou seja, uma formação onilateral. Essa
concepção foi incorporada à tradição marxiana sob a denominação de politecnia ou educação politécnica, em
virtude das próprias referências do autor ao termo, assim como de grande parte
dos estudiosos de sua obra.
Na formulação
anteriormente transcrita, Marx não discute detalhadamente o significado dos
elementos que constituem sua concepção educacional, mas sinaliza algo de sua compreensão sobre o tema ao
afirmar que “a combinação de trabalho
produtivo pago, educação mental [intelectual], exercício físico e instrução
politécnica, elevará a classe operária bastante acima do nível das classes
superior e média” (idem, ibidem). Disso depreendemos que,
para ele, politecnia ou instrução politécnica é parte da formação integral,
logo, não é sinônimo dela.
Em contrapartida, ele afirma que a grande
indústria, na medida em que se desenvolve, necessita “substituir o
indivíduo-fragmento, o mero portador de uma função social de detalhe, pelo
indivíduo totalmente desenvolvido, para o qual diferentes funções sociais são
modos de atividade que se alternam” (Marx, 1996, p. 114).
Afirma ainda que “um
momento espontaneamente desenvolvido com base na grande indústria desse processo
de revolucionamento são as escolas politécnicas e agronômicas”. Isso sugere, portanto,
que Marx associa educação politécnica à ideia de indivíduo integralmente desenvolvido.
Machado (1989, p. 129) corrobora essa ideia ao assinalar que: “No ensino
politécnico, não é suficiente apenas o domínio das técnicas; faz-se necessário dominá-las
ao nível intelectual”. A autora prossegue: Para compreender o funcionamento
dos recursos tecnológicos Marx recomenda partir sempre das simplificações,
reduzindo os mecanismos complicados a seus princípios básicos, privilegiando a
transmissão dos princípios gerais e dos conceitos científicos utilizados com
mais frequência.
Nestas indicações, está presente a preocupação de Marx com a
definição do caráter do ensino politécnico, no sentido de conferir-lhe um nível
de reflexão e abstração necessário à compreensão da tecnologia, não apenas na
sua aplicação imediata, mas na sua dimensão
intelectual. (idem, ibidem, grifo nosso)
Assim, é pela formação politécnica que se daria a
formação intelectual, física e tecnológica, o que sugere que o conceito de politecnia
pode abarcar a ideia de formação humana integral. No que diz respeito à
educação do corpo,
esta deveria compensar os efeitos nocivos do trabalho à saúde que,
sobretudo no sistema de máquinas, “agride o sistema nervoso ao máximo, reprime
o jogo polivalente dos músculos e confisca toda a livre atividade corpórea e
espiritual” (Marx, 1996, p. 53).
Note-se o caráter de indissociabilidade
entre educação do corpo, educação intelectual e educação tecnológica que
Marx confere à formação de qualidade superior. Relativamente à dimensão intelectual, esta deve abranger
a totalidade das ciências, pois apenas com o domínio dos conhecimentos
científicos e tecnológicos que explicam e fundamentam o trabalho produtivo a
classe operária poderia colocar-se “bastante acima do nível das classes
superior e média”.
Marx defende a educação
como formação humana integral para todas as crianças e jovens de ambos os sexos. Entretanto, ele tinha
clareza de que isso só seria possível em uma sociedade futura, com a superação
da hegemonia burguesa. Para Manacorda, ao tratar da dimensão
intelectual da formação humana, Marx também inclui a história, as letras e as
artes, conforme explica, ao se referir ao termo “educação intelectual” presente
nas Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório.
Continuando a busca
pela gênese da concepção de formação humana integral com base no conceito de
politecnia, é preciso compreender que, contraditoriamente, para Marx e Engels,
ela originaria-se da própria transformação da indústria, que constantemente
revoluciona as bases técnicas da produção e, com ela, a divisão do trabalho,
intensificando-a.
A indústria moderna, com a constante complexificação da maquinaria,
tende a exigir outro trabalhador, de maior versatilidade (Marx, 1996). Daí pode-se depreender o vínculo
entre a gênese da concepção de politecnia e a industrialização.
Não obstante, nessa
defesa, Marx não tem por fim o aumento da produtividade do capital.
Contrariamente, seu objetivo político é que os trabalhadores voltem a ter o
domínio sobre o conteúdo do próprio trabalho e, dessa forma, tenham melhores
condições para enfrentar a contradição entre capital e trabalho, visando
à superação do modo de produção capitalista, pela via do aprofundamento de suas
contradições internas.
Em suma, seria a partir
da divisão do trabalho, e mais, de
sua agudização, que se engendrariam as contradições que possibilitariam sua
superação e, em consequência, a da dualidade entre trabalho intelectual e
trabalho manual, cultura técnica e cultura geral, educação profissional e
educação geral.
Para sintetizar o exposto acerca da concepção marxiana de
formação humana, recorremos a Lombardi (2010), que, a partir do próprio Marx e
de Engels, resume essa concepção em três grandes direções:
A)crítica à educação, ao ensino e à qualificação profissional burguesa;
B)relação do proletariado com a ciência, a cultura e a educação;
C)educação
comunista e formação integral do homem.
Com relação a esse
último aspecto, o autor destaca que a
“politecnia” é articuladora do fazer e do pensar, superando a “monotecnia”.
Assim, para ele: A concepção educacional marxiana/engelsiana tinha como ponto
de partida a crítica da sociedade burguesa, a proclamação da necessária
superação dessa mesma sociedade e como ponto de chegada a constituição do reino
da liberdade.
Visão de Gramsci
Inicialmente, ressaltamos que, enquanto Marx e Engels viveram no século XIX e seus estudos mais importantes dizem respeito à realidade inglesa da fase áurea da primeira revolução industrial, Gramsci viveu no XX, tendo a sociedade italiana como campo de estudo fundamental.
Ou seja, as bases materiais concretas para analisar o movimento do real foram distintas. Assim, Gramsci apoia-se no pensamento de Marx, mas nem sempre aponta para as mesmas soluções propostas por ele. O trabalho, em suas dimensões ontológica e histórica, é reconhecido por Gramsci como Princípio Educativo Fundamental.
Princípio Educativo Fundamental= o trabalho em suas dimensões ontológica e histórica
No texto “Americanismo e fordismo” (2000b), assevera que a forma mais desenvolvida do trabalho em sua extrema racionalização implica o sacrifício do corpo e da espiritualidade do trabalhador. Porém, ainda que assim seja, é incapaz de abstrair dos homens sua atividade intelectual:
[...] não se pode
separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora
de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é
um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo,
possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou
modificar uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, isto
é, para suscitar novas maneiras de pensar [...]. (Gramsci, 2000a, p. 53)
Ao pensar a organicidade
entre trabalho e educação, Gramsci a localiza enquanto processo por meio
do qual o homem adquire propriamente as condições de humanização, processo este
circunstanciado pela história e pelos modos de produção da existência.
Nesse processo, a integração entre trabalho, ciência e cultura comporia o
princípio educativo da escola unitária, alternativa à escola tradicional,
uma escola “desinteressada”, essencialmente humanista.
PRINCÍPIO EDUCATIVO DA ESCOLA UNITÁRIA: integração entre trabalho, ciência e cultura
As formulações de Marx,
Engels e Gramsci estiveram presentes no campo de pesquisa que analisa as
relações entre trabalho e educação e constituíram-se em referências
conceituais, epistemológicas e metodológicas.
Observa-se nesse campo certa convergência de posições quando se trata da
perspectiva de uma educação que tome o trabalho como princípio educativo.
No entanto, o mesmo não ocorre com relação ao uso do termo politecnia,
evidenciando-se aqui confrontos conceituais. Sem a intenção de proceder a um
“estado da arte”, destacamos a seguir algumas formas pelas quais essa discussão
se fez presente nos diálogos sobre trabalho e educação no Brasil.
"Perspectiva de uma educação que tome o trabalho como princípio educativo"
Machado (1989), ao analisar as origens e significados da ideia de
unificação escolar e as propostas dela decorrentes, seja de uma perspectiva
liberal-burguesa, seja de uma perspectiva socialista ou proletária, situa o
conceito de politecnia no marco da luta de classes tal como originalmente
formulado por Marx, para quem a conjugação entre instrução e trabalho seria a
“primeira e insuficiente concessão” (Marx apud Machado, 1989, p. 99) do
capital relativamente à classe operária. Tal concessão seria, no entanto,
decorrente não de um ato de benevolência, mas das contradições mesmas dessa
sociedade que, como consequência, gerariam os germes de sua superação. Assim, para
Machado (1989, p. 126),
Na concepção de Marx, o
ensino politécnico, de preparação multifacética do homem, seria o único capaz
de dar conta do movimento dialético de continuidade--ruptura, pois não somente
estaria articulado com a tendência histórica de desenvolvimento da sociedade,
como a fortaleceria.
O ensino politécnico seria, por isso, fermento da transformação:
O ensino politécnico seria, por isso, fermento da transformação:
·
A)contribuiria para aumentar a produção;
· B) fortalecer o desenvolvimento das forças produtivas;
· C)intensificar a contradição principal do capitalismo (entre socialização
crescente da produção e mecanismos privados da apropriação).
Segundo a autora, o
ensino politécnico, ao mesmo tempo em que atua diretamente sobre os
indivíduos, contribui para o desenvolvimento de condições objetivas de
transformação da sociedade. Kuenzer (2002, p. 87) sinaliza na direção de
que a politecnia no contexto da formação dos trabalhadores é também e
fundamentalmente uma questão de natureza epistemológica, posto que:
A politecnia supõe uma
nova forma de integração de vários conhecimentos, que quebra os
bloqueios artificiais que transformam as disciplinas em compartimentos específicos,
expressão da fragmentação da ciência. [...] Nessa concepção, evidencia--se que conhecer a totalidade não é dominar todos
os fatos, mas as relações entre eles, sempre reconstruídas no movimento da
história.
"O EP CONTRIBUI PARA O DESENVOLVIMENTO DE CONDIÇÕES OBJETIVAS DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE"
"O EP CONTRIBUI PARA O DESENVOLVIMENTO DE CONDIÇÕES OBJETIVAS DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE"
Frigotto (2003, p. 173)
utiliza-se indistintamente dos termos educação onilateral, politécnica ou
tecnológica ao referir-se ao eixo conceptual em torno do qual se buscou pensar
a educação para o conjunto da sociedade brasileira no contexto dos anos 1980.
Ressalta, ainda, que formação humana onilateral, politécnica ou tecnológica e
a escola unitária compõem dois conjuntos de categorias filosófica,
pedagógica e politicamente articulados.
Saviani, para quem “a noção de politecnia se
encaminha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho
intelectual, entre instrução profissional e instrução geral” (Saviani,
2003a, p. 136). Esse autor localiza no conceito de politecnia a possibilidade de superação da ruptura
entre ciência e técnica na medida em que postula um processo de trabalho
que se desenvolva pela unidade indissolúvel dos aspectos manuais e
intelectuais. Para ele, politecnia significa “o domínio dos fundamentos científicos
das diferentes técnicas” (idem, p. 140).
Em diálogo com Saviani,
mas não apenas com ele, Nosella
(2007, p. 137) assim se posiciona: “Considero que os educadores brasileiros
marxistas, ao erguerem na atualidade a bandeira da politecnia,
acenam semanticamente para uma posição teórica historicamente ultrapassada
que, entretanto, representou, nos anos de 1990, o posicionamento majoritário
desses educadores”.
Os argumentos de Nosella em defesa dessa posição são de
natureza semântica, histórica e política (idem, p. 141). O autor afirma
que se foram atribuindo ao termo vários sentidos conforme a intenção de
aproximá-lo do campo marxista sem, no entanto, se ter a preocupação semântica rigorosa
de investigar suas origens e sentidos ao longo da história. Propõe-se, assim, a
fazê-lo. Com base em sua análise, conclui:
É importante reafirmar
que Marx, como todos os clássicos, é um mestre de método, não de doutrina e,
menos ainda, de linguagem. Sua proposta educacional consiste na fórmula
pedagógico-escolar de “instrução
intelectual, física e tecnológica para todos [...] pública e gratuita [...] de
união do ensino com a produção [...] livre de interferências políticas e
ideológicas” (Marx apud Manacorda, 2006a).
Parece-nos que Nosella
diverge do uso do termo politecnia, e não da ideia de formação humana integral
que tenha o trabalho como princípio; porém, isso não é pouco e não é uma
questão de natureza apenas semântica, como ele mesmo afirma.
Como vimos, há uma
clara convergência na produção de Marx e Engels, de Gramsci e de outros pesquisadores
do campo trabalho e educação em assumir o trabalho como base da formação na
perspectiva da emancipação e autonomia humana.
"O TRABALHO É A BASE DA FORMAÇÃO DA EMANCIPAÇÃO E AUTONOMIA HUMANA"
"COMO A POLITECNIA E A ESCOLA UNITÁRIA SÃO PARA UMA PERSPECTIVA DE FUTURO, O EMI PODE SER A O INÍCIO DESSA FORMAÇÃO"
Gramsci acentua as dimensões intelectual, cultural e humanística
"O TRABALHO É A BASE DA FORMAÇÃO DA EMANCIPAÇÃO E AUTONOMIA HUMANA"
Ensino médio integrado: rumo à politecnia ou subsunção ao
capital ?
Partiremos do
pressuposto de que tanto na formação
onilateral, politécnica ou integral, cuja gênese está na obra de Marx e Engels, como na escola unitária, de Gramsci, não há espaço para a
profissionalização stricto sensu quando se trata da formação de
adolescentes, tendo como referência a emancipação humana. Segundo esses
autores, formar, ainda na adolescência, o sujeito para uma determinada
profissão potencializa a unilateralidade em detrimento da onilateralidade. Nesse
sentido, Nosella (2011, p. 1.062) afirma:
Para nós, a grande
questão é a seguinte: como priorizar na escola média brasileira a dimensão da
formação para a autonomia, quando a liberdade para a maioria é tão exígua? Como
proteger o direito dos adolescentes a um tempo justo de “indefinição
profissional ativa e heurística”, quando, de um lado, a minoria de jovens da
classe dirigente usufrui de inúmeros anos de formação e “indecisão” profissional,
enquanto, de outro lado, a imensa maioria para sobreviver é forçada a uma definição
profissional precoce? A resposta a essa problemática passa pela luta política
que visa tornar a sociedade mais justa e igualitária e, ao mesmo tempo, pela
defesa de concepções e práticas pedagógicas que fortaleçam o ensino médio unitário
não profissionalizante e para todos.
"REGRA: FORMAR AINDA NA ADOLESCÊNCIA"
"REGRA: FORMAR AINDA NA ADOLESCÊNCIA"
Concordamos com isso,
mas tentaremos demonstrar que Marx e Engels, ao discutirem a politecnia em seu
sentido pleno, o que é compatível com o conceito de escola unitária, de
Gramsci, referem-se a uma possibilidade futura a ser materializada em uma
sociedade na qual a classe trabalhadora tenha ascendido ao poder político.
Ao
discutirem a educação do tempo em que viveram – em uma sociedade capitalista –,
admitem a possibilidade da profissionalização quando associada à educação
intelectual, física e tecnológica, compreendendo-a como o germe da educação do
futuro (Marx, 1996).
Como o sistema
capital e as relações sociais burguesas continuam hegemônicos, se as hipóteses
anteriores forem corretas, atualmente a discussão sobre a politecnia e a escola
unitária, em seus sentidos plenos e para todos, ocorre em uma perspectiva de futuro.
Nesse caso, o ensino médio integrado pode ser a gênese dessa formação.
"COMO A POLITECNIA E A ESCOLA UNITÁRIA SÃO PARA UMA PERSPECTIVA DE FUTURO, O EMI PODE SER A O INÍCIO DESSA FORMAÇÃO"
No Manifesto do Partido Comunista (1997), de 1848, Marx e Engels afirmam
que, após o primeiro passo da revolução operária – elevação do proletariado à
condição de classe dominante –, é necessário aplicar algumas medidas “que
economicamente parecem insuficientes e insustentáveis, mas que no decurso do
movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento
de todo o modo de produção”. A décima medida é: “Educação pública e gratuita de
todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua
forma hodierna.
Unificação da
educação com a produção material, etc.” (idem, s.p.). Na lógica do Manifesto,
portanto, logra-se “a conquista da democracia pela luta” (idem, ibidem)
e aplicam-se medidas, inicialmente insuficientes, mas que gradualmente irão
“arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos
de produção na mão do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe
dominante” (idem, ibidem). No campo educacional, explicitam,
entre outros aspectos, a “unificação da educação com a produção material”.
Portanto, Marx e Engels, no Manifesto, colocam essa possibilidade plena
– unificação entre educação e produção material – apenas em uma sociedade
futura.
Evidentemente, no
transcurso da luta da classe trabalhadora rumo ao domínio do poder político se
produzirão, dentro do conflito entre capital e trabalho, avanços na perspectiva
da superação da sociedade burguesa, inclusive de sua educação. Aproximadamente
vinte anos após o Manifesto, Marx, nas Instruções para os delegados,
de 1866, formula um conjunto de teses para incorporação ao programa do partido,
visando fortalecer a luta rumo ao domínio do poder político. Apresenta um texto
mais elaborado sobre a concepção educacional socialista, fundamentado na
integração entre as dimensões intelectual, física e tecnológica, já discutida,
e cuja gênese foi a
“unificação da educação com a produção material”, anteriormente esboçada no Manifesto.
Quase
simultaneamente, é publicado o primeiro volume d’O capital, de modo que
Manacorda (2007, p. 45), ao se referir às Instruções para os delegados,
afirma que “À leitura desse texto devemos imediatamente associar aquela de
outro texto fundamental de Marx, O Capital”.
Assim, de forma
coerente com o que está na tese sobre o ensino – nas Instruções para os
delegados –, Marx, n’O capital (Capítulo XIII), ao se referir à
legislação fabril inglesa, deixa claro que na luta pela conquista do poder há
fases intermediárias que se vão engendrando na medida em que as posições
relativas das classes em conflito alteram-se conforme a correlação de forças
entre elas.
O autor coloca “como
primeira concessão penosamente arrancada ao capital” (Marx, 1996, p. 116) a
conjugação de ensino elementar com o trabalho fabril, que, apesar de ainda
estar longe da politecnia, traz seu germe. Conclui afirmando que “não há dúvida
de que a inevitável conquista do poder político pela classe operária há de conquistar
também para o ensino teórico e prático da tecnologia seu lugar nas escolas dos
trabalhadores” (idem, ibidem).
Concluímos então, a perspectiva da politecnia em seu sentido
pleno está colocada para uma sociedade na qual a classe trabalhadora tenha
conquistado o poder político, mas que é possível ir avançando nessa direção,
ainda na sociedade burguesa, aproveitando-se das contradições do modo de
produção capitalista.
Examinaremos agora a Crítica ao Programa de Gotha,
escrita cerca de dez anos após as Instruções para os delegados e O
capital e quase trinta depois do Manifesto. É uma dura e polêmica
crítica de Marx, prefaciada por Engels, ao que seria o Programa do Partido
Operário Socialista da Alemanha, fruto da unificação entre o Partido Operário
Social-Democrata e a União Geral Operária Alemã.
Sobre a educação, o
programa propõe, segundo Marx (1982b, s.p., grifo do original): O Partido
Operário Alemão reclama como base espiritual e ética [sittlich] do Estado:
“1. Educação popular geral e igual pelo Estado. Escolaridade
obrigatória geral. Instrução gratuita”. O autor, ao analisar a proposição, vaticina:
Educação popular
igual? O
que é que se imagina por detrás destas palavras? Acredita-se que na sociedade
hodierna (e é só com ela que se tem que ver) a educação pode ser igual para
todas as classes? Ou reclama-se que as classes superiores também devem ser
reduzidas compulsivamente ao módico da educação – da escola primária [Volksschule]
– o único compatível com as condições econômicas, não só dos operários
assalariados, mas também dos camponeses? (idem, grifos do original)
A compreensão do
conjunto da obra de Marx e Engels evidencia que a dura crítica ao Programa de
Gotha está na impossibilidade de sua materialização na sociedade atual (da
época desses textos). Dessa forma, critica-se o fato de que, em vez de se
apresentar uma tese dialeticamente factível, esta constituiu-se em uma declaração
de intenções, sem possibilidade de materialização, posto que descolada da
realidade concreta.
É por isso que Marx (idem)
continua a crítica afirmando: “O parágrafo sobre as escolas deveria, pelo
menos, ter reclamado escolas técnicas (teóricas e práticas) em ligação com a
escola primária”. Corroboramos, portanto, com Manacorda (2007, p. 54) quando,
ao se referir a esse texto, explica a decidida recusa de Marx [...] de uma
educação igual para todas as classes, pelo menos como objetivo a ser imediatamente
realizado na sociedade atual, burguesa, [...] o ensino não pode ser de repente
transmitido igual a todas as classes, sem o risco, evidentemente, de um rebaixamento
de nível, como hoje se diz. [...] No entanto, justamente [...] em que “na
sociedade atual [hodierna]”, reafirma-se indiretamente que, na sociedade do futuro,
será diferente: não é à toa que o vínculo ensino-trabalho (que, segundo as Instruções
de 1866, por compreender também a formação intelectual, era tal que permitiria
elevar a classe operária muito acima das classes superiores e médias) aparece
aqui formulado como um dos mais potentes meios de transformação da sociedade
atual.
Agora buscaremos em
Gramsci evidências de que sua negação a qualquer possibilidade de
profissionalização na etapa final da educação básica também está colocada em
uma perspectiva futura, portanto diferente da sociedade italiana da primeira
metade do século XX na qual – e a partir da qual – produziu, mormente, As
concepções de escola unitária, de Gramsci, e de politecnia, proveniente de Marx
e de Engels, não colidem. Ao contrário, compreendemos que são complementares e
que Gramsci aprofunda um aspecto da politecnia não muito explorado por Marx e
Engels: sua dimensão intelectual, cultural e humanística.
Gramsci acentua as dimensões intelectual, cultural e humanística
Concluímos que a escola unitária vai ao encontro da onilateralidade
e é o lugar onde ela deverá ocorrer. Gramsci (2000a, p. 36), defende que A
escola unitária ou de formação humanista [...] ou de cultura geral deveria se propor
a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um
certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa
autonomia na orientação e na iniciativa.
Aqui encontramos o
vínculo claro entre escola unitária e formação politécnica. Em primeiro lugar,
importa-nos esclarecer a compreensão de Gramsci sobre “formação humanista”.
Para o autor, o humanismo não pode ser compreendido em sua forma tradicional,
liberal, voltado para o ensino memorístico, mas um humanismo que contribua para
o desenvolvimento, nos sujeitos, da capacidade de “criação intelectual e
prática” e para a compreensão da totalidade social, tendo o princípio educativo
do trabalho como sua base.
Para Gramsci, nessa
escola não há espaço para a profissionalização. Assim, ele critica a tendência
italiana de “abolir qualquer tipo de escola ‘desinteressada’ (não imediatamente
interessada) e ‘formativa’, [...] bem como a de difundir cada vez mais as
escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura
atividade são predeterminados” (idem, p. 33), sendo explícito em sua
posição antiprofissionalização. Para ele, seja em caráter universitário ou não,
a formação profissional deverá ser posterior à escola unitária humanista, de
cultura geral.
Não obstante, tal
qual Marx e Engels, Gramsci também considera a escola unitária uma
possibilidade futura e que, dessa forma, na sociedade presente (à sua época) as
condições materiais concretas impediam sua materialização plena para todos. Encontramos
evidências dessa “concessão” quando o autor reconhece que “a fixação da idade
escolar obrigatória depende das condições econômicas gerais, já que estas podem
obrigar os jovens a uma certa colaboração produtiva imediata” (idem, p.
36).
Ao afirmar que no
tempo presente as “condições econômicas gerais” podem exigir que jovens tenham
de trabalhar antes de concluir a escola unitária, ele não admite diretamente a
profissionalização, mas reconhece a necessidade da existência de escolas distintas
em uma fase de transição, o que remete à possibilidade de profissionalização precoce
dos jovens cujas condições de vida exigirem.
O autor continua alinhando fatos
que, inicialmente, impõem limites à escola unitária. Reconhece que muitas
mudanças imprescindíveis à sua materialização implicam decisão política e
grande ampliação do orçamento destinado à educação:
A escola unitária requer
que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família, no
que toca à manutenção dos escolares, isto é, que seja completamente
transformado o orçamento da educação nacional, ampliando-o de um modo
imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação
das novas gerações torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim
pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. Mas esta
transformação da atividade escolar requer uma ampliação imprevista da
organização prática da escola, isto é, dos prédios, do material científico, do
corpo docente etc. (idem, ibidem)
Conclui explicando
que “por isso, inicialmente, o novo tipo de escola deverá ser – e não poderá
deixar de sê-lo – próprio de grupos restritos, de jovens escolhidos por concurso
ou indicados, sob sua responsabilidade, por instituições idôneas” (idem,
p. 37). De sua conclusão depreende-se que a mudança para a escola unitária não ocorrerá
sem fase de transição. Ao contrário, tal fase, na qual coexistirão distintas escolas,
entre elas as técnicas, é inevitável.
O autor não faz essa
afirmação diretamente, mas, ao dizer que na Itália havia a tendência “de
difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas” e que o novo
tipo de escola, inicialmente, não seria para todos, evidencia-se sua
consciência sobre a continuidade dessas escolas por um período impossível de
ser previsto com exatidão.
Após revisitarmos a
questão educacional em Marx e Engels e em Gramsci, concluímos que nossas
hipóteses de partida são válidas. Defendemos assim que atualmente ainda não
podemos materializar a politecnia e a escola unitária em seus sentidos plenos
para todos, imediatamente. Não obstante, também concluímos que é possível e
necessário plantar – e cuidar para que cresçam – as sementes da formação humana
integral, politécnica, unitária, aproveitando-nos das contradições do sistema capital.
Para tanto, na
“travessia” ainda é necessário reclamar por “escolas técnicas (teóricas e
práticas)”, com base no Princípio Educativo do Trabalho, onde está o germe do
ensino que poderá elevar a educação da classe operária bastante acima do nível das
classes superior e média. Se essa tese é válida
para a classe trabalhadora em geral, para o Brasil, imerso no capitalismo
neoliberal como quase todo o planeta e, além disso, estando na periferia desse
sistema, ela tem mais vigor ainda.
Em nosso país, a
situação da classe trabalhadora é muito mais degradante que nas regiões de
capitalismo avançado, onde, de uma ou outra maneira, passou-se pelo estado de
bem-estar social, o que garantiu aos trabalhadores alguns direitos sociais básicos
e a manutenção deles, mesmo em meio à crise atual. No Brasil, a extrema desigualdade
socioeconômica obriga grande parte dos filhos da classe trabalhadora a buscar,
bem antes dos 18 anos de idade, a inserção no mundo do trabalho,
visando complementar a renda familiar ou até a autossustentação, com baixíssima
escolaridade e sem nenhuma qualificação profissional, engordando as fileiras do
trabalho simples, mas contribuindo para a valorização do capital.
Retornando a Marx e
Engels, na Crítica ao Programa de Gotha, e pensando dialeticamente no
movimento do real, nos perguntamos: diante da realidade concreta, podemos hoje,
no Brasil, pensar na educação escolar dos adolescentes e jovens da classe
trabalhadora negando qualquer possibilidade de que tenham de trabalhar antes dos
18 anos de idade?
Diante desse quadro, pensar de
forma coerente com o materialismo histórico--dialético não é compreender essa
realidade socioeconômica e tentar “arrancar do capital” concessões que
contribuam para a formação integral da classe trabalhadora, mesmo que não seja,
para todos, na plenitude do conceito de politecnia, mas que se garanta a todos
a indissociabilidade entre “formação intelectual, física e tecnológica”, sem,
com isso, negligenciar a denúncia e o combate a todas as atrocidades cometidas contra
esses adolescentes, crianças e jovens?
A análise
desenvolvida nos permite responder afirmativamente e afirmar que na educação
brasileira atual essa perspectiva formativa existe como possibilidade teórica e
ético-política no ensino médio que garanta uma base unitária para todos, fundamentada
na concepção de formação humana integral, onilateral ou politécnica, tendo como
eixo estruturante o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura e, a partir dessa
mesma base, também oferecer, como possibilidade, o ensino médio integrado.
Concordamos, pois,
com Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 43). Para eles, Se a preparação
profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, admitir legalmente
essa necessidade é um problema ético. Não obstante, se o que se persegue não é
somente atender a essa necessidade, mas mudar as condições em que ela se
constitui, é também uma obrigação ética e política garantir que o ensino médio
se desenvolva sobre uma base unitária para todos.
Portanto, o ensino médio
integrado ao ensino técnico, sob uma base unitária de formação geral, é uma
condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade. Evidentemente,
essa “travessia” à qual se referem os autores é o processo de construção de uma
sociedade futura tantas vezes mencionada por Marx e Engels e já discutida ao
longo deste texto. A ideia de “travessia” pode suscitar uma compreensão etapista
da história. Não é essa a concepção que aqui defendemos. Compreendêmo-la como
constituinte de um movimento de continuidade e ruptura a partir do qual o novo
engendra-se no velho.
Nessa “travessia”, as
duas formas de organizar o ensino médio politécnico – com ou sem
profissionalização – são coerentes e poderão coexistir até que as condições materiais
objetivas da sociedade brasileira sejam tais que permitam aos jovens das classes
populares concluir a educação básica por volta dos 17 ou 18 anos de idade e
somente então pensar em uma profissão.
Hoje isso é um “luxo”, há muito tempo garantido
como direito apenas dos jovens dos estratos médios e altos da população. Some-se
ao exposto o fato de que, para além dos adolescentes e jovens, existe a
população adulta brasileira, predominantemente com baixa escolarização. Machado
(2010) afirma que no Brasil existem quase 135 milhões de pessoas com 18 anos ou
mais de idade, dos quais cerca de 101 milhões, 75% da faixa etária, não
concluíram a educação básica.
O estudo reforça de
maneira significativa toda a argumentação já desenvolvida, uma vez que a fase
adulta é aquela em que o ser humano é essencialmente sujeito do trabalho,
responsável pela produção da própria existência e da sociedade, além de lhe caber
a reprodução da espécie.
Entretanto, no caso brasileiro, a grande maioria
desses quase 80 milhões de pessoas está alijada do mundo do trabalho ou atuando
em sua periferia de forma precarizada. E a dura realidade nos obriga a lembrar
que isso é funcional aos interesses do capital, pois, já que não há lugar para
todos, que vençam os melhores!
Projetos em disputa : palavras finais
As políticas
educacionais dos anos 1990 estabeleceram, em seu conjunto, a separação
obrigatória entre o ensino médio e a educação profissional e submeteram o currículo à
pedagogia das competências, intensificando o caráter instrumental da educação,
especialmente no campo da educação profissional.
Tais políticas foram
amplamente discutidas em outros trabalhos (Frigotto; Ciavatta, 2006; Kuenzer,
2006; Ramos, 2004, entre outros). Assim, discutiremos o que vem ocorrendo a
partir dos anos 2000, destacando os embates em torno da relação entre o ensino
médio e a educação profissional. Daí resultou o decreto n. 5.154/2004, que abre
a possibilidade de integração entre eles, trazendo alguma expectativa de avanço
em direção à politecnia, mas mantendo, como acomodação e expressão de posições
contraditórias, as formas subsequente e concomitante.
No mesmo período, foi
dividida a Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC), criando-se a
Secretaria da Educação Básica (SEB) e a Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica (SETEC), fortalecendo o viés da separação entre a educação básica e
a educação profissional: à SETEC corresponderia o ensino médio desenvolvido na
rede federal, enquanto a SEB seria responsável por todo o ensino médio, o que
inclui o propedêutico e o integrado desenvolvido nas outras redes públicas.
Esse movimento também repercutiu nas relações entre o Ministério da Educação
(MEC) e as secretarias estaduais de educação, assim como no interior de cada uma delas,
sempre no sentido de dicotomizar as relações entre o ensino médio e a educação
profissional.
Em decorrência, foram
diferentes e não coordenados os processos construídos na SETEC e na SEB. Na
primeira, a falta de uma ação efetiva para exercer sua função indutora e
coordenadora das ações, assim como o surgimento de outros programas e projetos
governamentais que se tornaram prioritários, deslocou o foco da rede federal da
busca pela construção teórico-prática do ensino médio integrado.
Em 2007, sob a
coordenação da SEB, o governo federal lançou o Programa Brasil
Profissionalizado visando induzir os estados a introduzirem o ensino médio
integrado. Esse programa foi estruturado de modo que a União financie a infraestrutura
enquanto os estados assegurem algumas contrapartidas, entre elas a criação ou
adequação do quadro docente.
Em razão de distorções decorrentes do nosso pacto
federativo, a maioria dos estados, apesar de terem apresentado projeto e
recebido recursos significativos para executar o programa, não tem nem está
constituindo quadro de professores efetivos, especialmente no que se refere às
disciplinas específicas da educação profissional, e o curso técnico de nível
médio continua sem avançar na maioria dos estados.
Outro movimento a ser
destacado é a expansão da rede federal. É a presença do Estado brasileiro por
meio de instituições reconhecidas como de qualidade nas periferias das capitais
e em regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. Isso significa a
ampliação das possibilidades de muitos brasileiros terem acesso a uma educação
de qualidade, posto que, atualmente, são poucas as redes estaduais com condições
para garantir esse direito à população, apesar de ser responsabilidade dos
estados a universalização do acesso ao ensino médio.
Em contrapartida, nesse movimento
o governo cunhou nova configuração para a rede federal, criando os Institutos
Federais (IF), por meio da lei n. 11.892/2008. Antes disso, a centralidade das
discussões na rede estava voltada à sua função social no contexto da expansão
e, principalmente, no significado do ensino médio integrado, incluindo a
modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), para a sociedade brasileira.
Posteriormente,
deslocaram-se as discussões para as questões de cunho organizativo, ou seja,
para a infraestrutura física e administrativa das novas instituições, para a
ocupação dos cargos criados etc. Nesse caminho, marcado pelo imediatismo e
improvisação, negligencia--se a construção de projetos educacionais
fundamentados, elaborados coletivamente e coerentes com a realidade
socioeconômica local e regional de cada nova unidade.
Assim, a positividade
da expansão é, em certa medida, mitigada. Cabe ressaltar que isso ocorre em
meio ao recrudescimento do discurso, inclusive oficial, de que há um apagão de mão
de obra qualificada e que, portanto, é necessário formá-la rapidamente para
atender às necessidades imediatas do mercado de trabalho.
Outros importantes
movimentos são a elaboração de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Profissional Técnica de Nível Médio (DCNEPTNM) e para o ensino médio
(DCNEM). Embora a base legal para o ensino médio integrado na perspectiva da
politecnia seja de 2004 (decreto n. 5.154), apenas em 2010 foi retomada a
discussão sobre a necessidade do estabelecimento de novas diretrizes, por meio
de uma proposta do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Paralelamente ao
trâmite no CNE, articulou-se um grupo de trabalho na comunidade educacional,
formado por pesquisadores em educação, com a participação do MEC e de outros
órgãos públicos, produzindo-se dois textos relativos às DCNEPTNM e às DCNEM,
com propostas encaminhadas ao CNE. Ambos apresentam concepção tanto para o
ensino médio quanto para a educação profissional, o que inclui todas as suas
modalidades, tendo como base a politecnia e a formação humana integral e como
horizonte histórico a superação da dualidade entre formação básica e formação
profissional, por meio do currículo centrado na concepção de integração, e
tendo como eixos norteadores trabalho, ciência, tecnologia e cultura (Grupo de
Trabalho, 2010a, 2010b).
Tais documentos tiveram trâmites diferenciados no CNE:
enquanto o documento sobre as DCNEM foi praticamente incorporado em sua
totalidade pelo relator, sendo a base das novas diretrizes curriculares
aprovadas (parecer CNE/CEB 05/2011), a proposta de DCNEPTNM aprovada pelo CNE
(parecer CNE/CEB n. 11/2012) retoma concepções concernentes à perspectiva de fragmentação
e de competências para a empregabilidade.
O exposto evidencia
mais uma contradição. Por um lado, as DCNEM apontam na direção da formação
integral dos sujeitos. Por outro, as DCNEPTNM (parecer CNE/CEB n. 11/2012 e
resolução CNE/CEB n. 06/2012) vão em direção contrária e, mesmo antes de terem
sido homologadas, já contavam com amplo financiamento por meio do Programa
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), criado pela lei n.
12.513/2011.
Esse programa prevê o
financiamento público na esfera privada, com prioridade para as do sistema “S”,
para que estudantes do ensino médio propedêutico público possam fazer cursos
técnicos concomitantes nessas organizações. São 24 bilhões de reais (Brasil,
2012), cuja maior parte destina-se ao sistema “S”, inclusive para financiar a
“expansão da rede física de atendimento dos serviços nacionais de aprendizagem”
(Inciso III, do art. 4º da lei n. 12.513/2011).
O PRONATEC ainda
contribui para desresponsabilizar os estados da constituição de seus quadros
docentes da educação profissional – grande barreira à materialização do Brasil
Profissionalizado –, pois, ao realizar as parcerias com o sistema “S”
visando à concomitância, tende a diminuir as pressões sobre esses entes subnacionais
por melhorias significativas na qualidade do ensino médio proporcionado às
classes populares.
O Estado delega às entidades patronais a formação dos
estudantes das redes públicas de ensino – e financia o processo –,
concedendo-lhes o direito sobre a concepção de formação a ser materializada. Assim, também é ideia central a submissão da formação humana à pedagogia das
competências e às necessidades imediatas do mercado.
Na contramão desse
processo, há experiências advindas dos movimentos sociais – com destaque para o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se vem constituindo no
Brasil como protagonista, especialmente dos trabalhadores do campo –, e, nesse
sentido, os projetos educacionais desenvolvidos constituem uma referência
quando se trata de analisar as possibilidades de um projeto educacional
integrado a um projeto social contra-hegemônico dos trabalhadores.
Desse modo, o
conceito de educação do campo, que vem sendo construído no Brasil pelo MST e
outros movimentos sociais nas últimas décadas, não é somente a construção de
uma proposta de política educacional, mas uma luta conceitual, pedagógica,
política e ideológica. Essa trajetória e perspectiva são assim referidas:
Quase
ao mesmo tempo em que começou a lutar pela terra, o MST, através das famílias
acampadas e depois assentadas, começou a lutar também pelo acesso dos Sem Terra
à escola pública; agimos para provocar o Estado a agir; construímos e pressionamos
políticas públicas para a população do campo. Por isso chegamos, primeiro na
prática e depois no conceito, à educação do campo, defendendo o direito
que uma população tem de se educar e de pensar o mundo a partir do que faz e do
lugar em que vive. (MST, 2004, p. 12, grifos no original)
A luta, que no início
concentrava-se na educação fundamental para crianças e adolescentes, foi
alargando-se para a educação de jovens e adultos, a educação infantil, o ensino
médio e o ensino superior. O balanço de vinte anos de atuação realizado pelo
setor de educação do MST indica, em suas propostas e práticas educacionais, a presença
do conceito de formação humana integral, baseada na união entre trabalho e
educação, aproximando-se da perspectiva anteriormente analisada.
Essa união entre
educação, trabalho e luta social vai muito além do que se poderia considerar
uma tarefa específica da escola. De acordo com Roseli Caldart (2000, p. 143,
grifos do original), [...] não é possível
compreender o sentido da experiência de educação no e do MST se o foco de nosso
olhar permanecer fixo na escola. Somente quando passamos a olhar para o
conjunto do Movimento, e com a preocupação de enxergá-lo em sua dinâmica
histórica (que inclui a escola), é que conseguimos compreender que educação
pode ser mais do que educação, e que escola pode ser mais do
que escola, à
medida que sejam considerados os vínculos que constituem sua existência nesta
realidade.
Identificamos nesses
princípios uma clara aproximação da proposta do MST às teses marxianas da união
entre trabalho e educação e da onilateralidade.
Em síntese, na
análise dos elementos norteadores da proposta educacional do MST evidencia-se a
centralidade do trabalho na produção da realidade material e intelectual, na
produção do conhecimento e da cultura, aproximando-se tanto das proposições de
Marx e Engels no que se trata da concepção de politecnia quanto da perspectiva
gramsciana do princípio educativo do trabalho e da escola unitária.
Diante do exposto,
reiteramos que é um imperativo ético-político a constituição da formação humana
integral a partir de uma base unitária. Apesar disso, como a realidade concreta
se impõe, importa-nos sintetizar as múltiplas dificuldades que enfrenta a
materialização dessa concepção educacional.
A primeira é a
disputa política direta com o capital, pois seus intelectuais orgânicos
defendem ardorosamente a formação para o atendimento imediato aos interesses do
mercado. Enquanto isso, o governo federal tem posição ambígua: ora profere o
discurso da politecnia e da formação humana integral, mas vai pouco além das
palavras; ora assume, em nome dos interesses dos trabalhadores e dos mais
pobres, os interesses do
capital.
Nesse caso, promove ações efetivas, financiando-as regiamente (o
PRONATEC é um exemplo emblemático). Aos trabalhadores resta a organização com
vistas ao tensionamento em relação a essas posições. Nas esferas subnacionais,
a situação é ainda mais complexa. Na ausência de um sistema nacional de
educação, de uma concepção educacional que lhe oriente e da coordenação das
ações em nível nacional, os estados e os municípios, a cada ciclo de governo, a
exemplo da esfera federal, a cada hora apontam para uma direção. Quando não simultaneamente,
cada ente federado define seus próprios rumos, muitas vezes antagônicos.
De modo geral,
observa-se que o metabolismo do capital faz com que a educação proporcionada à
classe trabalhadora tenha certa coerência interna entre as três esferas de
governo, e o pêndulo pende para o tipo de formação que interessa às suas
necessidades imediatas – a do capital. Além disso, a sociedade em geral – e
particularmente as classes trabalhadoras populares não organizadas,
historicamente alijadas do acesso a uma educação de qualidade socialmente
referenciada – está sempre ávida por qualquer migalha que lhe seja atirada e,
dessa forma, tende a aplaudir, agradecer e reivindicar por mais algumas dessas
migalhas.
A proposta em torno
da formação humana integral e do ensino médio integrado enfrenta, ainda, a
crítica no âmbito da academia, desde as correntes mais conservadoras, que
defendem a educação de cunho academicista, inspirada no Iluminismo, no
“humanismo liberal”, até os progressistas, que o consideram como uma concessão
aos interesses do capital.
Assim, ao deixarmos
(a academia, outros intelectuais, a maioria da classe trabalhadora e de suas
entidades representativas) de disputar politicamente uma concepção de ensino
médio politécnico e de ensino médio politécnico integrado à educação
profissional (para adolescentes, jovens e adultos) que se possa concretizar como
travessia rumo à onilateralidade, abrimos espaço e estendemos o “tapete vermelho”
para que o capital aproprie-se de bandeiras históricas do campo socialista e as
ressignifique alegremente em favor de seus interesses, com financiamento
público e aplausos da população.
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