Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira






Por DANTE HENRIQUE MOURA. DOMINGOS LEITE LIMA FILHO e MÔNICA RIBEIRO SILVA


Trabalho, formação humana e educação escolar sob a égide do capital: algumas  aproximações

Neste texto, refletimos sobre a formação humana na sociedade brasileira, principalmente na fase de escolarização que corresponde ao final da educação básica: o ensino médio. A questão é complexa, pois a problemática da formação humana não nasce nem se encerra no sistema educacional. 

É a necessidade vital de produzir a própria existência por meio do trabalho o determinante para que os seres humanos dominem os conhecimentos e as práticas sociais necessários a essa produção, ou seja, é preciso que sejam formados, não obrigatoriamente em instituições especificamente destinadas a esse fim. 

Por isso, a escola apresentou-se “inicialmente ‘inessencial’, um luxo e não uma necessidade primária” (Manacorda, 2007, p. 23).  A formação é produto das relações sociais e de produção, e a escola, espaço institucionalizado onde também existe parte dela, é fruto de tais relações. 

Dessa forma, não foi essencial, inicialmente, mas um luxo, porque foi concebida para atender aos interesses de uma determinada classe, a dos dirigentes. Por ter em sua gênese esse corte de classe e não da totalidade social, a escola tende a descolar-se da sociedade, ao mesmo tempo em que reflete suas contradições.

Na atual fase de desenvolvimento das forças produtivas, ancoradas na ciência, na técnica e na tecnologia, sob o domínio do sistema capital, a escola vem tornando-se “essencial” à sociabilidade humana

Precisamente por isso, seu caráter classista agudiza-se. Isso porque “a necessidade de valorização do capital, a partir da propriedade privada dos meios de produção” (Kuenzer, 2010, p. 861) demanda a divisão “entre trabalho intelectual e manual como estratégia de subordinação, tendo em vista a valorização do capital” (idem, ibidem).

Em decorrência, a divisão social e técnica do trabalho constitui-se estratégia fundamental do modo de produção capitalista, fazendo com que seu metabolismo requeira um sistema educacional classista e que, assim, separe trabalho intelectual e trabalho manual, trabalho simples e trabalho complexo, cultura geral e cultura técnica, ou seja, uma escola que forma seres humanos unilaterais, mutilados, tanto das classes dirigentes como das subalternizadas. 

É claro que isso não ocorre de forma mecânica, mas em uma relação dialética em razão das forças que estão em disputa e que, em alguma medida, freiam parte da ganância do capital.



Politecnia: confrontos conceituais

Visão de Marx

Importa-nos esclarecer elementos centrais no conjunto da obra de Marx e de Marx e Engels no que concerne às suas produções no campo da educação. Um deles é o fato de que não trataram do tema educação, ensino ou formação profissional isoladamente. 

Ao contrário, todas as reflexões inserem-se na discussão sobre como homens, mulheres, jovens e crianças, especialmente da classe trabalhadora, produzem a vida em meio às relações sociais e de produção, particularmente sob o capitalismo.

Foi em decorrência da impossibilidade de “entender a problemática educacional em si mesma” (Lombardi, 2010, p. 319), devido a sua imbricação com o modo de os seres humanos produzirem a própria existência, que Marx e Engels “acabaram formulando a necessária união da instrução com o trabalho material” (idem, ibidem), eixo condutor de suas formulações no campo da educação.

Marx, nas Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores, de agosto de 1866, ao discutir a forma abominável como o trabalho infantil e juvenil era desenvolvido na fábrica capitalista, defende a necessidade de impor limites a esse tipo de trabalho e afirma a defesa da união entre educação e trabalho produtivo em outra perspectiva. Nessa mesma obra, Marx (1982a, s.p., grifo do original) assevera que a educação da classe trabalhadora deve compreender:

1)Primeiramente: Educação mental [intelectual].

2) Educação física, tal como é dada em escolas de ginástica e pelo exercício militar.

3)Terceiro: Instrução tecnológica, que transmite os princípios gerais de todos os processos de produção  e, simultaneamente, inicia a criança e o jovem no uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos os ofícios.

Ao tratar de educação intelectual, física e tecnológica, Marx está claramente sinalizando para a formação integral do ser humano, ou seja, uma formação onilateral. Essa concepção foi incorporada à tradição marxiana sob a denominação de politecnia ou educação politécnica, em virtude das próprias referências do autor ao termo, assim como de grande parte dos estudiosos de sua obra.

Na formulação anteriormente transcrita, Marx não discute detalhadamente o significado dos elementos que constituem sua concepção educacional, mas sinaliza algo de sua compreensão sobre o tema ao afirmar que “a combinação de trabalho produtivo pago, educação mental [intelectual], exercício físico e instrução politécnica, elevará a classe operária bastante acima do nível das classes superior e média” (idem, ibidem). Disso depreendemos que, para ele, politecnia ou instrução politécnica é parte da formação integral, logo, não é sinônimo dela.

Em contrapartida, ele afirma que a grande indústria, na medida em que se desenvolve, necessita “substituir o indivíduo-fragmento, o mero portador de uma função social de detalhe, pelo indivíduo totalmente desenvolvido, para o qual diferentes funções sociais são modos de atividade que se alternam” (Marx, 1996, p. 114). 

Afirma ainda que “um momento espontaneamente desenvolvido com base na grande indústria desse processo de revolucionamento são as escolas politécnicas e agronômicas”. Isso sugere, portanto, que Marx associa educação politécnica à ideia de indivíduo integralmente desenvolvido. 

Machado (1989, p. 129) corrobora essa ideia ao assinalar que: “No ensino politécnico, não é suficiente apenas o domínio das técnicas; faz-se necessário dominá-las ao nível intelectual”. A autora prossegue: Para compreender o funcionamento dos recursos tecnológicos Marx recomenda partir sempre das simplificações, reduzindo os mecanismos complicados a seus princípios básicos, privilegiando a transmissão dos princípios gerais e dos conceitos científicos utilizados com mais frequência. 

Nestas indicações, está presente a preocupação de Marx com a definição do caráter do ensino politécnico, no sentido de conferir-lhe um nível de reflexão e abstração necessário à compreensão da tecnologia, não apenas na sua aplicação imediata, mas na sua dimensão intelectual. (idem, ibidem, grifo nosso)

Assim, é pela formação politécnica que se daria a formação intelectual, física e tecnológica, o que sugere que o conceito de politecnia pode abarcar a ideia de formação humana integral. No que diz respeito à educação do corpo, esta deveria compensar os efeitos nocivos do trabalho à saúde que, sobretudo no sistema de máquinas, “agride o sistema nervoso ao máximo, reprime o jogo polivalente dos músculos e confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual” (Marx, 1996, p. 53).

Note-se o caráter de indissociabilidade entre educação do corpo, educação intelectual e educação tecnológica que Marx confere à formação de qualidade superior. Relativamente à dimensão intelectual, esta deve abranger a totalidade das ciências, pois apenas com o domínio dos conhecimentos científicos e tecnológicos que explicam e fundamentam o trabalho produtivo a classe operária poderia colocar-se “bastante acima do nível das classes superior e média”.

Marx defende a educação como formação humana integral para todas as crianças e jovens de ambos os sexos. Entretanto, ele tinha clareza de que isso só seria possível em uma sociedade futura, com a superação da hegemonia burguesa. Para Manacorda, ao tratar da dimensão intelectual da formação humana, Marx também inclui a história, as letras e as artes, conforme explica, ao se referir ao termo “educação intelectual” presente nas Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório.
 
Continuando a busca pela gênese da concepção de formação humana integral com base no conceito de politecnia, é preciso compreender que, contraditoriamente, para Marx e Engels, ela originaria-se da própria transformação da indústria, que constantemente revoluciona as bases técnicas da produção e, com ela, a divisão do trabalho, intensificando-a.

 A indústria moderna, com a constante complexificação da maquinaria, tende a exigir outro trabalhador, de maior versatilidade (Marx, 1996). Daí pode-se depreender o vínculo entre a gênese da concepção de politecnia e a industrialização.

Não obstante, nessa defesa, Marx não tem por fim o aumento da produtividade do capital. Contrariamente, seu objetivo político é que os trabalhadores voltem a ter o domínio sobre o conteúdo do próprio trabalho e, dessa forma, tenham melhores condições para enfrentar a contradição entre capital e trabalho, visando à superação do modo de produção capitalista, pela via do aprofundamento de suas contradições internas.

Em suma, seria a partir da divisão do trabalho, e mais, de sua agudização, que se engendrariam as contradições que possibilitariam sua superação e, em consequência, a da dualidade entre trabalho intelectual e trabalho manual, cultura técnica e cultura geral, educação profissional e educação geral. 

Para sintetizar o exposto acerca da concepção marxiana de formação humana, recorremos a Lombardi (2010), que, a partir do próprio Marx e de Engels, resume essa concepção em três grandes direções:

A)crítica à educação, ao ensino e à qualificação profissional burguesa;

B)relação do proletariado com a ciência, a cultura e a educação;

C)educação comunista e formação integral do homem.

Com relação a esse último aspecto, o autor destaca que a “politecnia” é articuladora do fazer e do pensar, superando a “monotecnia”. Assim, para ele: A concepção educacional marxiana/engelsiana tinha como ponto de partida a crítica da sociedade burguesa, a proclamação da necessária superação dessa mesma sociedade e como ponto de chegada a constituição do reino da liberdade





 Visão de Gramsci

Inicialmente, ressaltamos que, enquanto Marx e Engels viveram no século XIX e seus estudos mais importantes dizem respeito à realidade inglesa da fase áurea da primeira revolução industrial, Gramsci viveu no XX, tendo a sociedade italiana como campo de estudo fundamental. 

Ou seja, as bases materiais concretas para analisar o movimento do real foram distintas.  Assim, Gramsci apoia-se no pensamento de Marx, mas nem sempre aponta para as mesmas soluções propostas por ele. O trabalho, em suas dimensões ontológica e histórica, é reconhecido por Gramsci como Princípio Educativo Fundamental. 

Princípio Educativo Fundamental= o trabalho em suas dimensões ontológica e histórica

No texto “Americanismo e fordismo” (2000b), assevera que a forma mais desenvolvida do trabalho em sua extrema racionalização implica o sacrifício do corpo e da espiritualidade do trabalhador. Porém, ainda que assim seja, é incapaz de abstrair dos homens sua atividade intelectual: 
 
[...] não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou modificar uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar [...]. (Gramsci, 2000a, p. 53)

Ao pensar a organicidade entre trabalho e educação, Gramsci a localiza enquanto processo por meio do qual o homem adquire propriamente as condições de humanização, processo este circunstanciado pela história e pelos modos de produção da existência. Nesse processo, a integração entre trabalho, ciência e cultura comporia o princípio educativo da escola unitária, alternativa à escola tradicional, uma escola “desinteressada”, essencialmente humanista.
PRINCÍPIO EDUCATIVO DA ESCOLA UNITÁRIA: integração entre trabalho, ciência e cultura

As formulações de Marx, Engels e Gramsci estiveram presentes no campo de pesquisa que analisa as relações entre trabalho e educação e constituíram-se em referências conceituais, epistemológicas e metodológicas. 

Observa-se nesse campo certa convergência de posições quando se trata da perspectiva de uma educação que tome o trabalho como princípio educativo. No entanto, o mesmo não ocorre com relação ao uso do termo politecnia, evidenciando-se aqui confrontos conceituais. Sem a intenção de proceder a um “estado da arte”, destacamos a seguir algumas formas pelas quais essa discussão se fez presente nos diálogos sobre trabalho e educação no Brasil.

"Perspectiva de uma educação que tome o trabalho como princípio educativo"

Machado (1989), ao analisar as origens e significados da ideia de unificação escolar e as propostas dela decorrentes, seja de uma perspectiva liberal-burguesa, seja de uma perspectiva socialista ou proletária, situa o conceito de politecnia no marco da luta de classes tal como originalmente formulado por Marx, para quem a conjugação entre instrução e trabalho seria a “primeira e insuficiente concessão” (Marx apud Machado, 1989, p. 99) do capital relativamente à classe operária. Tal concessão seria, no entanto, decorrente não de um ato de benevolência, mas das contradições mesmas dessa sociedade que, como consequência, gerariam os germes de sua superação. Assim, para Machado (1989, p. 126),

Na concepção de Marx, o ensino politécnico, de preparação multifacética do homem, seria o único capaz de dar conta do movimento dialético de continuidade--ruptura, pois não somente estaria articulado com a tendência histórica de desenvolvimento da sociedade, como a fortaleceria. 

O ensino politécnico seria, por isso, fermento da transformação:

·         A)contribuiria para aumentar a produção;



·      B) fortalecer o desenvolvimento das forças produtivas;



·   C)intensificar a contradição principal do capitalismo (entre socialização crescente da produção e mecanismos privados da apropriação).

Segundo a autora, o ensino politécnico, ao mesmo tempo em que atua diretamente sobre os indivíduos, contribui para o desenvolvimento de condições objetivas de transformação da sociedade. Kuenzer (2002, p. 87) sinaliza na direção de que a politecnia no contexto da formação dos trabalhadores é também e fundamentalmente uma questão de natureza epistemológica, posto que:

A politecnia supõe uma nova forma de integração de vários conhecimentos, que quebra os bloqueios artificiais que transformam as disciplinas em compartimentos específicos, expressão da fragmentação da ciência. [...] Nessa concepção, evidencia--se que conhecer a totalidade não é dominar todos os fatos, mas as relações entre eles, sempre reconstruídas no movimento da história.

"O EP  CONTRIBUI PARA O DESENVOLVIMENTO DE CONDIÇÕES OBJETIVAS DE TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE"
 

Frigotto (2003, p. 173) utiliza-se indistintamente dos termos educação onilateral, politécnica ou tecnológica ao referir-se ao eixo conceptual em torno do qual se buscou pensar a educação para o conjunto da sociedade brasileira no contexto dos anos 1980. Ressalta, ainda, que formação humana onilateral, politécnica ou tecnológica e a escola unitária compõem dois conjuntos de categorias filosófica, pedagógica e politicamente articulados.


Saviani, para quem “a noção de politecnia se encaminha na direção da superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução profissional e instrução geral” (Saviani, 2003a, p. 136). Esse autor localiza no conceito de politecnia a possibilidade de superação da ruptura entre ciência e técnica na medida em que postula um processo de trabalho que se desenvolva pela unidade indissolúvel dos aspectos manuais e intelectuais. Para ele, politecnia significa “o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas” (idem, p. 140).

Em diálogo com Saviani, mas não apenas com ele, Nosella (2007, p. 137) assim se posiciona: “Considero que os educadores brasileiros marxistas, ao erguerem na atualidade a bandeira da politecnia, acenam semanticamente para uma posição teórica historicamente ultrapassada que, entretanto, representou, nos anos de 1990, o posicionamento majoritário desses educadores”. 

Os argumentos de Nosella em defesa dessa posição são de natureza semântica, histórica e política (idem, p. 141). O autor afirma que se foram atribuindo ao termo vários sentidos conforme a intenção de aproximá-lo do campo marxista sem, no entanto, se ter a preocupação semântica rigorosa de investigar suas origens e sentidos ao longo da história. Propõe-se, assim, a fazê-lo. Com base em sua análise, conclui:

É importante reafirmar que Marx, como todos os clássicos, é um mestre de método, não de doutrina e, menos ainda, de linguagem. Sua proposta educacional consiste na fórmula pedagógico-escolar de “instrução intelectual, física e tecnológica para todos [...] pública e gratuita [...] de união do ensino com a produção [...] livre de interferências políticas e ideológicas” (Marx apud Manacorda, 2006a).

Parece-nos que Nosella diverge do uso do termo politecnia, e não da ideia de formação humana integral que tenha o trabalho como princípio; porém, isso não é pouco e não é uma questão de natureza apenas semântica, como ele mesmo afirma.

Como vimos, há uma clara convergência na produção de Marx e Engels, de Gramsci e de outros pesquisadores do campo trabalho e educação em assumir o trabalho como base da formação na perspectiva da emancipação e autonomia humana. 

"O TRABALHO É A BASE DA FORMAÇÃO DA EMANCIPAÇÃO E AUTONOMIA HUMANA"



Ensino médio integrado: rumo à politecnia ou subsunção ao capital ?



Partiremos do pressuposto de que tanto na formação onilateral, politécnica ou integral, cuja gênese está na obra de Marx e Engels, como na escola unitária, de Gramsci, não há espaço para a profissionalização stricto sensu quando se trata da formação de adolescentes, tendo como referência a emancipação humana. Segundo esses autores, formar, ainda na adolescência, o sujeito para uma determinada profissão potencializa a unilateralidade em detrimento da onilateralidade. Nesse sentido, Nosella (2011, p. 1.062) afirma:



Para nós, a grande questão é a seguinte: como priorizar na escola média brasileira a dimensão da formação para a autonomia, quando a liberdade para a maioria é tão exígua? Como proteger o direito dos adolescentes a um tempo justo de “indefinição profissional ativa e heurística”, quando, de um lado, a minoria de jovens da classe dirigente usufrui de inúmeros anos de formação e “indecisão” profissional, enquanto, de outro lado, a imensa maioria para sobreviver é forçada a uma definição profissional precoce? A resposta a essa problemática passa pela luta política que visa tornar a sociedade mais justa e igualitária e, ao mesmo tempo, pela defesa de concepções e práticas pedagógicas que fortaleçam o ensino médio unitário não profissionalizante e para todos.

"REGRA: FORMAR AINDA NA ADOLESCÊNCIA"



Concordamos com isso, mas tentaremos demonstrar que Marx e Engels, ao discutirem a politecnia em seu sentido pleno, o que é compatível com o conceito de escola unitária, de Gramsci, referem-se a uma possibilidade futura a ser materializada em uma sociedade na qual a classe trabalhadora tenha ascendido ao poder político



Ao discutirem a educação do tempo em que viveram – em uma sociedade capitalista –, admitem a possibilidade da profissionalização quando associada à educação intelectual, física e tecnológica, compreendendo-a como o germe da educação do futuro (Marx, 1996).

Como o sistema capital e as relações sociais burguesas continuam hegemônicos, se as hipóteses anteriores forem corretas, atualmente a discussão sobre a politecnia e a escola unitária, em seus sentidos plenos e para todos, ocorre em uma perspectiva de futuro. Nesse caso, o ensino médio integrado pode ser a gênese dessa formação

"COMO A POLITECNIA E A ESCOLA UNITÁRIA SÃO PARA UMA PERSPECTIVA DE FUTURO, O EMI PODE SER A O INÍCIO DESSA FORMAÇÃO"


No Manifesto do Partido Comunista (1997), de 1848, Marx e Engels afirmam que, após o primeiro passo da revolução operária – elevação do proletariado à condição de classe dominante –, é necessário aplicar algumas medidas “que economicamente parecem insuficientes e insustentáveis, mas que no decurso do movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento de todo o modo de produção”. A décima medida é: “Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua forma hodierna.

Unificação da educação com a produção material, etc.” (idem, s.p.). Na lógica do Manifesto, portanto, logra-se “a conquista da democracia pela luta” (idem, ibidem) e aplicam-se medidas, inicialmente insuficientes, mas que gradualmente irão “arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante” (idem, ibidem). No campo educacional, explicitam, entre outros aspectos, a “unificação da educação com a produção material”. Portanto, Marx e Engels, no Manifesto, colocam essa possibilidade plena – unificação entre educação e produção materialapenas em uma sociedade futura.

Evidentemente, no transcurso da luta da classe trabalhadora rumo ao domínio do poder político se produzirão, dentro do conflito entre capital e trabalho, avanços na perspectiva da superação da sociedade burguesa, inclusive de sua educação. Aproximadamente vinte anos após o Manifesto, Marx, nas Instruções para os delegados, de 1866, formula um conjunto de teses para incorporação ao programa do partido, visando fortalecer a luta rumo ao domínio do poder político. Apresenta um texto mais elaborado sobre a concepção educacional socialista, fundamentado na integração entre as dimensões intelectual, física e tecnológica, já discutida, e cuja gênese foi a “unificação da educação com a produção material”, anteriormente esboçada no Manifesto.

Quase simultaneamente, é publicado o primeiro volume d’O capital, de modo que Manacorda (2007, p. 45), ao se referir às Instruções para os delegados, afirma que “À leitura desse texto devemos imediatamente associar aquela de outro texto fundamental de Marx, O Capital”.

Assim, de forma coerente com o que está na tese sobre o ensino – nas Instruções para os delegados –, Marx, n’O capital (Capítulo XIII), ao se referir à legislação fabril inglesa, deixa claro que na luta pela conquista do poder há fases intermediárias que se vão engendrando na medida em que as posições relativas das classes em conflito alteram-se conforme a correlação de forças entre elas.

O autor coloca “como primeira concessão penosamente arrancada ao capital” (Marx, 1996, p. 116) a conjugação de ensino elementar com o trabalho fabril, que, apesar de ainda estar longe da politecnia, traz seu germe. Conclui afirmando que “não há dúvida de que a inevitável conquista do poder político pela classe operária há de conquistar também para o ensino teórico e prático da tecnologia seu lugar nas escolas dos trabalhadores” (idem, ibidem).

Concluímos então, a perspectiva da politecnia em seu sentido pleno está colocada para uma sociedade na qual a classe trabalhadora tenha conquistado o poder político, mas que é possível ir avançando nessa direção, ainda na sociedade burguesa, aproveitando-se das contradições do modo de produção capitalista. 

Examinaremos agora a Crítica ao Programa de Gotha, escrita cerca de dez anos após as Instruções para os delegados e O capital e quase trinta depois do Manifesto. É uma dura e polêmica crítica de Marx, prefaciada por Engels, ao que seria o Programa do Partido Operário Socialista da Alemanha, fruto da unificação entre o Partido Operário Social-Democrata e a União Geral Operária Alemã.

Sobre a educação, o programa propõe, segundo Marx (1982b, s.p., grifo do original): O Partido Operário Alemão reclama como base espiritual e ética [sittlich] do Estado: “1. Educação popular geral e igual pelo Estado. Escolaridade obrigatória geral. Instrução gratuita”. O autor, ao analisar a proposição, vaticina:

Educação popular igual? O que é que se imagina por detrás destas palavras? Acredita-se que na sociedade hodierna (e é só com ela que se tem que ver) a educação pode ser igual para todas as classes? Ou reclama-se que as classes superiores também devem ser reduzidas compulsivamente ao módico da educação – da escola primária [Volksschule] – o único compatível com as condições econômicas, não só dos operários assalariados, mas também dos camponeses? (idem, grifos do original)

A compreensão do conjunto da obra de Marx e Engels evidencia que a dura crítica ao Programa de Gotha está na impossibilidade de sua materialização na sociedade atual (da época desses textos). Dessa forma, critica-se o fato de que, em vez de se apresentar uma tese dialeticamente factível, esta constituiu-se em uma declaração de intenções, sem possibilidade de materialização, posto que descolada da realidade concreta.

É por isso que Marx (idem) continua a crítica afirmando: “O parágrafo sobre as escolas deveria, pelo menos, ter reclamado escolas técnicas (teóricas e práticas) em ligação com a escola primária”. Corroboramos, portanto, com Manacorda (2007, p. 54) quando, ao se referir a esse texto, explica a decidida recusa de Marx [...] de uma educação igual para todas as classes, pelo menos como objetivo a ser imediatamente realizado na sociedade atual, burguesa, [...] o ensino não pode ser de repente transmitido igual a todas as classes, sem o risco, evidentemente, de um rebaixamento de nível, como hoje se diz. [...] No entanto, justamente [...] em que “na sociedade atual [hodierna]”, reafirma-se indiretamente que, na sociedade do futuro, será diferente: não é à toa que o vínculo ensino-trabalho (que, segundo as Instruções de 1866, por compreender também a formação intelectual, era tal que permitiria elevar a classe operária muito acima das classes superiores e médias) aparece aqui formulado como um dos mais potentes meios de transformação da sociedade atual.

Agora buscaremos em Gramsci evidências de que sua negação a qualquer possibilidade de profissionalização na etapa final da educação básica também está colocada em uma perspectiva futura, portanto diferente da sociedade italiana da primeira metade do século XX na qual – e a partir da qual – produziu, mormente, As concepções de escola unitária, de Gramsci, e de politecnia, proveniente de Marx e de Engels, não colidem. Ao contrário, compreendemos que são complementares e que Gramsci aprofunda um aspecto da politecnia não muito explorado por Marx e Engels: sua dimensão intelectual, cultural e humanística.

Gramsci acentua as dimensões intelectual, cultural e humanística

Concluímos que a escola unitária vai ao encontro da onilateralidade e é o lugar onde ela deverá ocorrer. Gramsci (2000a, p. 36), defende que A escola unitária ou de formação humanista [...] ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.


Aqui encontramos o vínculo claro entre escola unitária e formação politécnica. Em primeiro lugar, importa-nos esclarecer a compreensão de Gramsci sobre “formação humanista”. Para o autor, o humanismo não pode ser compreendido em sua forma tradicional, liberal, voltado para o ensino memorístico, mas um humanismo que contribua para o desenvolvimento, nos sujeitos, da capacidade de “criação intelectual e prática” e para a compreensão da totalidade social, tendo o princípio educativo do trabalho como sua base.

Para Gramsci, nessa escola não há espaço para a profissionalização. Assim, ele critica a tendência italiana de “abolir qualquer tipo de escola ‘desinteressada’ (não imediatamente interessada) e ‘formativa’, [...] bem como a de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados” (idem, p. 33), sendo explícito em sua posição antiprofissionalização. Para ele, seja em caráter universitário ou não, a formação profissional deverá ser posterior à escola unitária humanista, de cultura geral.

Não obstante, tal qual Marx e Engels, Gramsci também considera a escola unitária uma possibilidade futura e que, dessa forma, na sociedade presente (à sua época) as condições materiais concretas impediam sua materialização plena para todos. Encontramos evidências dessa “concessão” quando o autor reconhece que “a fixação da idade escolar obrigatória depende das condições econômicas gerais, já que estas podem obrigar os jovens a uma certa colaboração produtiva imediata” (idem, p. 36).

Ao afirmar que no tempo presente as “condições econômicas gerais” podem exigir que jovens tenham de trabalhar antes de concluir a escola unitária, ele não admite diretamente a profissionalização, mas reconhece a necessidade da existência de escolas distintas em uma fase de transição, o que remete à possibilidade de profissionalização precoce dos jovens cujas condições de vida exigirem.

O autor continua alinhando fatos que, inicialmente, impõem limites à escola unitária. Reconhece que muitas mudanças imprescindíveis à sua materialização implicam decisão política e grande ampliação do orçamento destinado à educação: 

A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família, no que toca à manutenção dos escolares, isto é, que seja completamente transformado o orçamento da educação nacional, ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação das novas gerações torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. Mas esta transformação da atividade escolar requer uma ampliação imprevista da organização prática da escola, isto é, dos prédios, do material científico, do corpo docente etc. (idem, ibidem)

Conclui explicando que “por isso, inicialmente, o novo tipo de escola deverá ser – e não poderá deixar de sê-lo – próprio de grupos restritos, de jovens escolhidos por concurso ou indicados, sob sua responsabilidade, por instituições idôneas” (idem, p. 37). De sua conclusão depreende-se que a mudança para a escola unitária não ocorrerá sem fase de transição. Ao contrário, tal fase, na qual coexistirão distintas escolas, entre elas as técnicas, é inevitável.

O autor não faz essa afirmação diretamente, mas, ao dizer que na Itália havia a tendência “de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas” e que o novo tipo de escola, inicialmente, não seria para todos, evidencia-se sua consciência sobre a continuidade dessas escolas por um período impossível de ser previsto com exatidão.

Após revisitarmos a questão educacional em Marx e Engels e em Gramsci, concluímos que nossas hipóteses de partida são válidas. Defendemos assim que atualmente ainda não podemos materializar a politecnia e a escola unitária em seus sentidos plenos para todos, imediatamente. Não obstante, também concluímos que é possível e necessário plantar – e cuidar para que cresçam – as sementes da formação humana integral, politécnica, unitária, aproveitando-nos das contradições do sistema capital.

Para tanto, na “travessia” ainda é necessário reclamar por “escolas técnicas (teóricas e práticas)”, com base no Princípio Educativo do Trabalho, onde está o germe do ensino que poderá elevar a educação da classe operária bastante acima do nível das classes superior e média. Se essa tese é válida para a classe trabalhadora em geral, para o Brasil, imerso no capitalismo neoliberal como quase todo o planeta e, além disso, estando na periferia desse sistema, ela tem mais vigor ainda.

Em nosso país, a situação da classe trabalhadora é muito mais degradante que nas regiões de capitalismo avançado, onde, de uma ou outra maneira, passou-se pelo estado de bem-estar social, o que garantiu aos trabalhadores alguns direitos sociais básicos e a manutenção deles, mesmo em meio à crise atual. No Brasil, a extrema desigualdade socioeconômica obriga grande parte dos filhos da classe trabalhadora a buscar, bem antes dos 18 anos de idade, a inserção no mundo do trabalho, visando complementar a renda familiar ou até a autossustentação, com baixíssima escolaridade e sem nenhuma qualificação profissional, engordando as fileiras do trabalho simples, mas contribuindo para a valorização do capital.

Retornando a Marx e Engels, na Crítica ao Programa de Gotha, e pensando dialeticamente no movimento do real, nos perguntamos: diante da realidade concreta, podemos hoje, no Brasil, pensar na educação escolar dos adolescentes e jovens da classe trabalhadora negando qualquer possibilidade de que tenham de trabalhar antes dos 18 anos de idade?

Diante desse quadro, pensar de forma coerente com o materialismo histórico--dialético não é compreender essa realidade socioeconômica e tentar “arrancar do capital” concessões que contribuam para a formação integral da classe trabalhadora, mesmo que não seja, para todos, na plenitude do conceito de politecnia, mas que se garanta a todos a indissociabilidade entre “formação intelectual, física e tecnológica”, sem, com isso, negligenciar a denúncia e o combate a todas as atrocidades cometidas contra esses adolescentes, crianças e jovens?


A análise desenvolvida nos permite responder afirmativamente e afirmar que na educação brasileira atual essa perspectiva formativa existe como possibilidade teórica e ético-política no ensino médio que garanta uma base unitária para todos, fundamentada na concepção de formação humana integral, onilateral ou politécnica, tendo como eixo estruturante o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura e, a partir dessa mesma base, também oferecer, como possibilidade, o ensino médio integrado.

Concordamos, pois, com Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 43). Para eles, Se a preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, admitir legalmente essa necessidade é um problema ético. Não obstante, se o que se persegue não é somente atender a essa necessidade, mas mudar as condições em que ela se constitui, é também uma obrigação ética e política garantir que o ensino médio se desenvolva sobre uma base unitária para todos.

Portanto, o ensino médio integrado ao ensino técnico, sob uma base unitária de formação geral, é uma condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade. Evidentemente, essa “travessia” à qual se referem os autores é o processo de construção de uma sociedade futura tantas vezes mencionada por Marx e Engels e já discutida ao longo deste texto. A ideia de “travessia” pode suscitar uma compreensão etapista da história. Não é essa a concepção que aqui defendemos. Compreendêmo-la como constituinte de um movimento de continuidade e ruptura a partir do qual o novo engendra-se no velho.

Nessa “travessia”, as duas formas de organizar o ensino médio politécnico – com ou sem profissionalização – são coerentes e poderão coexistir até que as condições materiais objetivas da sociedade brasileira sejam tais que permitam aos jovens das classes populares concluir a educação básica por volta dos 17 ou 18 anos de idade e somente então pensar em uma profissão. 

Hoje isso é um “luxo”, há muito tempo garantido como direito apenas dos jovens dos estratos médios e altos da população. Some-se ao exposto o fato de que, para além dos adolescentes e jovens, existe a população adulta brasileira, predominantemente com baixa escolarização. Machado (2010) afirma que no Brasil existem quase 135 milhões de pessoas com 18 anos ou mais de idade, dos quais cerca de 101 milhões, 75% da faixa etária, não concluíram a educação básica.

O estudo reforça de maneira significativa toda a argumentação já desenvolvida, uma vez que a fase adulta é aquela em que o ser humano é essencialmente sujeito do trabalho, responsável pela produção da própria existência e da sociedade, além de lhe caber a reprodução da espécie.

Entretanto, no caso brasileiro, a grande maioria desses quase 80 milhões de pessoas está alijada do mundo do trabalho ou atuando em sua periferia de forma precarizada. E a dura realidade nos obriga a lembrar que isso é funcional aos interesses do capital, pois, já que não há lugar para todos, que vençam os melhores!

Projetos em disputa : palavras finais

As políticas educacionais dos anos 1990 estabeleceram, em seu conjunto, a separação obrigatória entre o ensino médio e a educação profissional e submeteram o currículo à pedagogia das competências, intensificando o caráter instrumental da educação, especialmente no campo da educação profissional.

Tais políticas foram amplamente discutidas em outros trabalhos (Frigotto; Ciavatta, 2006; Kuenzer, 2006; Ramos, 2004, entre outros). Assim, discutiremos o que vem ocorrendo a partir dos anos 2000, destacando os embates em torno da relação entre o ensino médio e a educação profissional. Daí resultou o decreto n. 5.154/2004, que abre a possibilidade de integração entre eles, trazendo alguma expectativa de avanço em direção à politecnia, mas mantendo, como acomodação e expressão de posições contraditórias, as formas subsequente e concomitante.

No mesmo período, foi dividida a Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC), criando-se a Secretaria da Educação Básica (SEB) e a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), fortalecendo o viés da separação entre a educação básica e a educação profissional: à SETEC corresponderia o ensino médio desenvolvido na rede federal, enquanto a SEB seria responsável por todo o ensino médio, o que inclui o propedêutico e o integrado desenvolvido nas outras redes públicas. Esse movimento também repercutiu nas relações entre o Ministério da Educação (MEC) e as secretarias estaduais de educação, assim como no interior de cada uma delas, sempre no sentido de dicotomizar as relações entre o ensino médio e a educação profissional.

Em decorrência, foram diferentes e não coordenados os processos construídos na SETEC e na SEB. Na primeira, a falta de uma ação efetiva para exercer sua função indutora e coordenadora das ações, assim como o surgimento de outros programas e projetos governamentais que se tornaram prioritários, deslocou o foco da rede federal da busca pela construção teórico-prática do ensino médio integrado.

Em 2007, sob a coordenação da SEB, o governo federal lançou o Programa Brasil Profissionalizado visando induzir os estados a introduzirem o ensino médio integrado. Esse programa foi estruturado de modo que a União financie a infraestrutura enquanto os estados assegurem algumas contrapartidas, entre elas a criação ou adequação do quadro docente.

Em razão de distorções decorrentes do nosso pacto federativo, a maioria dos estados, apesar de terem apresentado projeto e recebido recursos significativos para executar o programa, não tem nem está constituindo quadro de professores efetivos, especialmente no que se refere às disciplinas específicas da educação profissional, e o curso técnico de nível médio continua sem avançar na maioria dos estados.

Outro movimento a ser destacado é a expansão da rede federal. É a presença do Estado brasileiro por meio de instituições reconhecidas como de qualidade nas periferias das capitais e em regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. Isso significa a ampliação das possibilidades de muitos brasileiros terem acesso a uma educação de qualidade, posto que, atualmente, são poucas as redes estaduais com condições para garantir esse direito à população, apesar de ser responsabilidade dos estados a universalização do acesso ao ensino médio.

Em contrapartida, nesse movimento o governo cunhou nova configuração para a rede federal, criando os Institutos Federais (IF), por meio da lei n. 11.892/2008. Antes disso, a centralidade das discussões na rede estava voltada à sua função social no contexto da expansão e, principalmente, no significado do ensino médio integrado, incluindo a modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), para a sociedade brasileira.

Posteriormente, deslocaram-se as discussões para as questões de cunho organizativo, ou seja, para a infraestrutura física e administrativa das novas instituições, para a ocupação dos cargos criados etc. Nesse caminho, marcado pelo imediatismo e improvisação, negligencia--se a construção de projetos educacionais fundamentados, elaborados coletivamente e coerentes com a realidade socioeconômica local e regional de cada nova unidade.

Assim, a positividade da expansão é, em certa medida, mitigada. Cabe ressaltar que isso ocorre em meio ao recrudescimento do discurso, inclusive oficial, de que há um apagão de mão de obra qualificada e que, portanto, é necessário formá-la rapidamente para atender às necessidades imediatas do mercado de trabalho.

Outros importantes movimentos são a elaboração de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (DCNEPTNM) e para o ensino médio (DCNEM). Embora a base legal para o ensino médio integrado na perspectiva da politecnia seja de 2004 (decreto n. 5.154), apenas em 2010 foi retomada a discussão sobre a necessidade do estabelecimento de novas diretrizes, por meio de uma proposta do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Paralelamente ao trâmite no CNE, articulou-se um grupo de trabalho na comunidade educacional, formado por pesquisadores em educação, com a participação do MEC e de outros órgãos públicos, produzindo-se dois textos relativos às DCNEPTNM e às DCNEM, com propostas encaminhadas ao CNE. Ambos apresentam concepção tanto para o ensino médio quanto para a educação profissional, o que inclui todas as suas modalidades, tendo como base a politecnia e a formação humana integral e como horizonte histórico a superação da dualidade entre formação básica e formação profissional, por meio do currículo centrado na concepção de integração, e tendo como eixos norteadores trabalho, ciência, tecnologia e cultura (Grupo de Trabalho, 2010a, 2010b). 

Tais documentos tiveram trâmites diferenciados no CNE: enquanto o documento sobre as DCNEM foi praticamente incorporado em sua totalidade pelo relator, sendo a base das novas diretrizes curriculares aprovadas (parecer CNE/CEB 05/2011), a proposta de DCNEPTNM aprovada pelo CNE (parecer CNE/CEB n. 11/2012) retoma concepções concernentes à perspectiva de fragmentação e de competências para a empregabilidade.

O exposto evidencia mais uma contradição. Por um lado, as DCNEM apontam na direção da formação integral dos sujeitos. Por outro, as DCNEPTNM (parecer CNE/CEB n. 11/2012 e resolução CNE/CEB n. 06/2012) vão em direção contrária e, mesmo antes de terem sido homologadas, já contavam com amplo financiamento por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), criado pela lei n. 12.513/2011.

Esse programa prevê o financiamento público na esfera privada, com prioridade para as do sistema “S”, para que estudantes do ensino médio propedêutico público possam fazer cursos técnicos concomitantes nessas organizações. São 24 bilhões de reais (Brasil, 2012), cuja maior parte destina-se ao sistema “S”, inclusive para financiar a “expansão da rede física de atendimento dos serviços nacionais de aprendizagem” (Inciso III, do art. 4º da lei n. 12.513/2011).

O PRONATEC ainda contribui para desresponsabilizar os estados da constituição de seus quadros docentes da educação profissional – grande barreira à materialização do Brasil Profissionalizado –, pois, ao realizar as parcerias com o sistema “S” visando à concomitância, tende a diminuir as pressões sobre esses entes subnacionais por melhorias significativas na qualidade do ensino médio proporcionado às classes populares.

O Estado delega às entidades patronais a formação dos estudantes das redes públicas de ensino – e financia o processo –, concedendo-lhes o direito sobre a concepção de formação a ser materializada. Assim, também é ideia central a submissão da formação humana à pedagogia das competências e às necessidades imediatas do mercado.

Na contramão desse processo, há experiências advindas dos movimentos sociais – com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se vem constituindo no Brasil como protagonista, especialmente dos trabalhadores do campo –, e, nesse sentido, os projetos educacionais desenvolvidos constituem uma referência quando se trata de analisar as possibilidades de um projeto educacional integrado a um projeto social contra-hegemônico dos trabalhadores.

Desse modo, o conceito de educação do campo, que vem sendo construído no Brasil pelo MST e outros movimentos sociais nas últimas décadas, não é somente a construção de uma proposta de política educacional, mas uma luta conceitual, pedagógica, política e ideológica. Essa trajetória e perspectiva são assim referidas: 

Quase ao mesmo tempo em que começou a lutar pela terra, o MST, através das famílias acampadas e depois assentadas, começou a lutar também pelo acesso dos Sem Terra à escola pública; agimos para provocar o Estado a agir; construímos e pressionamos políticas públicas para a população do campo. Por isso chegamos, primeiro na prática e depois no conceito, à educação do campo, defendendo o direito que uma população tem de se educar e de pensar o mundo a partir do que faz e do lugar em que vive. (MST, 2004, p. 12, grifos no original)


A luta, que no início concentrava-se na educação fundamental para crianças e adolescentes, foi alargando-se para a educação de jovens e adultos, a educação infantil, o ensino médio e o ensino superior. O balanço de vinte anos de atuação realizado pelo setor de educação do MST indica, em suas propostas e práticas educacionais, a presença do conceito de formação humana integral, baseada na união entre trabalho e educação, aproximando-se da perspectiva anteriormente analisada.


Essa união entre educação, trabalho e luta social vai muito além do que se poderia considerar uma tarefa específica da escola. De acordo com Roseli Caldart (2000, p. 143, grifos do original), [...] não é possível compreender o sentido da experiência de educação no e do MST se o foco de nosso olhar permanecer fixo na escola. Somente quando passamos a olhar para o conjunto do Movimento, e com a preocupação de enxergá-lo em sua dinâmica histórica (que inclui a escola), é que conseguimos compreender que educação pode ser mais do que educação, e que escola pode ser mais do que escola, à medida que sejam considerados os vínculos que constituem sua existência nesta realidade.

Identificamos nesses princípios uma clara aproximação da proposta do MST às teses marxianas da união entre trabalho e educação e da onilateralidade.
Em síntese, na análise dos elementos norteadores da proposta educacional do MST evidencia-se a centralidade do trabalho na produção da realidade material e intelectual, na produção do conhecimento e da cultura, aproximando-se tanto das proposições de Marx e Engels no que se trata da concepção de politecnia quanto da perspectiva gramsciana do princípio educativo do trabalho e da escola unitária.

Diante do exposto, reiteramos que é um imperativo ético-político a constituição da formação humana integral a partir de uma base unitária. Apesar disso, como a realidade concreta se impõe, importa-nos sintetizar as múltiplas dificuldades que enfrenta a materialização dessa concepção educacional.

A primeira é a disputa política direta com o capital, pois seus intelectuais orgânicos defendem ardorosamente a formação para o atendimento imediato aos interesses do mercado. Enquanto isso, o governo federal tem posição ambígua: ora profere o discurso da politecnia e da formação humana integral, mas vai pouco além das palavras; ora assume, em nome dos interesses dos trabalhadores e dos mais pobres, os interesses do capital. 

Nesse caso, promove ações efetivas, financiando-as regiamente (o PRONATEC é um exemplo emblemático). Aos trabalhadores resta a organização com vistas ao tensionamento em relação a essas posições. Nas esferas subnacionais, a situação é ainda mais complexa. Na ausência de um sistema nacional de educação, de uma concepção educacional que lhe oriente e da coordenação das ações em nível nacional, os estados e os municípios, a cada ciclo de governo, a exemplo da esfera federal, a cada hora apontam para uma direção. Quando não simultaneamente, cada ente federado define seus próprios rumos, muitas vezes antagônicos.

De modo geral, observa-se que o metabolismo do capital faz com que a educação proporcionada à classe trabalhadora tenha certa coerência interna entre as três esferas de governo, e o pêndulo pende para o tipo de formação que interessa às suas necessidades imediatas – a do capital. Além disso, a sociedade em geral – e particularmente as classes trabalhadoras populares não organizadas, historicamente alijadas do acesso a uma educação de qualidade socialmente referenciada – está sempre ávida por qualquer migalha que lhe seja atirada e, dessa forma, tende a aplaudir, agradecer e reivindicar por mais algumas dessas migalhas.

A proposta em torno da formação humana integral e do ensino médio integrado enfrenta, ainda, a crítica no âmbito da academia, desde as correntes mais conservadoras, que defendem a educação de cunho academicista, inspirada no Iluminismo, no “humanismo liberal”, até os progressistas, que o consideram como uma concessão aos interesses do capital.

Assim, ao deixarmos (a academia, outros intelectuais, a maioria da classe trabalhadora e de suas entidades representativas) de disputar politicamente uma concepção de ensino médio politécnico e de ensino médio politécnico integrado à educação profissional (para adolescentes, jovens e adultos) que se possa concretizar como travessia rumo à onilateralidade, abrimos espaço e estendemos o “tapete vermelho” para que o capital aproprie-se de bandeiras históricas do campo socialista e as ressignifique alegremente em favor de seus interesses, com financiamento público e aplausos da população.

 


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