Étienne de La Boétie (1530-1563) |
Por Welliton Resende
Inspirado na obra clássica de Etienne de La Boétie de 1577, este pequeno ensaio procura um paralelo entre os cenários contextualizados em uma França situada no Século XVI e a situação atual do Brasil. De forma reflexiva o leitor será convidado a enxergar os pararelismos.
Em princípio, Boétie escreveu a obra Discurso da Servidão Voluntária em um contexto
repleto de conflitos entre a monarquia francesa e o povo. Ressalta-se que tal situação encontra-se presente no quadro atual tendo em vista o que o atual governo encontra-se com índices de rejeição elevadíssimos.
A pergunta central do discurso é: o que faz um povo se render a um só homem? Em princípio, a submissão de pessoas a um
poder era compreensível, visto que a figura divina era central na vida delas. O rei como representante era entendido como superior em relação aos
demais. Portanto, não havia meio algum de questionamento. Questionar o rei, seria questionar o próprio Deus.
Tendo em vista que no Século XVI as monarquias começaram a enfraquecer-se, Boétie começou a questionar: o que faz com que as
pessoas sirvam tão docilmente um “poderoso” se Deus já não é mais tão central
na vida em sociedade?
O desvendamento da questão começa com a elucidação dos conceitos. Servidão é um termo medieval, que deriva da palavra servo
que, como se sabe era o indivíduo que trabalhava forçadamente para o senhor
feudal. Já voluntária ou voluntário, é o indivíduo que realiza
determinada ação de maneira espontânea, conforme a sua vontade. É a partir dessa contraditoriedade que o autor
desenvolverá seus argumentos.
A obra começa com uma citação de Ulisses em Homero
(p.11): “Em ter vários senhores nenhum bem sei, Que um seja o senhor, e que um
só seja o rei”, ou seja, na Monarquia a forma de governar é centralizada em torno de
um só homem. Esse pensamento levou o autor a ser considerado um anarquista.
“Por hora
gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos,
tantas cidades, tantas nações suportem quando preferem tolerá-lo a
contradizê-lo.”. Temos que tentar entender de que forma repúblicas se submetem a
tolerar ao contradizer ordens dadas por um só homem, ou melhor, uma só força,
sendo que os mesmos poderiam rebelar-se?
Justifica este pensamento indignando-se com a forma
com que estas pessoas se submetem a pobreza e precariedades em nome de uma
proteção fantasiosa e mascarada, pois estes mesmos se protegem lutando sobre as
ordens de monarcas que somente exercem poder sobre os mesmos, esquecendo seus
deveres quanto a líderes populares.
A briga por busca de liberdade dos animais deveria ser um exemplo a ser seguido pelos homens. Um peixe quando capturado luta até a exaustão por
sua liberdade, um elefante que quebra seus próprios dentes liberando o marfim
para os caçadores para não ser capturado, pois não conseguem viver com o prazer
da servidão, pássaros que se debatem em suas gaiolas e tentam sempre a
liberdade não se sujeitando a viver sem liberdade, animais que foram feitos
para servir ao homem, mas que não conseguem acostumar-se a servir sem
protestar.
Em contrapartida homens aceitam viver presos servindo
a seus superiores, ou melhor, os tiranos, sentindo-se gloriosos e prazerosos.
Embora
a liberdade seja algo fácil de readquirir, afinal para ele a liberdade faz
parte da natureza humana, os homens parecem não desejarem serem livres, parecem
querer servir a um senhor (tirano) colocando este último num posto superior.
Destaca que o servo possui as mesmas
características físicas do senhor, mas teme ser visto, ouvido em qualquer lugar
que vá como se fosse constantemente vigiado por alguém que possui vários olhos
e ouvidos. Assim, para Boétie, os homens se deixam governar.
A Tirania e a Aceitação da Tirania
Os Tiranos segundo o autor (p.19) podem obter “o
reino por eleição do povo; outros pela força das armas; outros por sucessão de
sua raça.”
Com esta afirmação ele julga necessário classificar estes tipos de
tiranias através de seu comportamento pós conquista do poder. Como se sabe quem
conquista o poder através de guerras acredita-se que agem como se fosse terras
conquistadas, as quais estão agora sobre seu poder através de sua força.
Os
reis que nascem sabendo que serão tiranos cheios de servos, que dizem vir do
leite a força para liderar e exigir de seus súditos a lealdade mesmo que em
discordância, tendo por ele uma figura de poder supremo, pois sabem que este
reino é sua herança.
Para o autor deveria ser humano aquele que herdou este
poder através de seu povo, mas constata que mesmo vindo do povo estes costumam
serem tiranos, modificando sua conduta sabe se lá o porquê após a eleição e
ainda treinando familiares para seguir seu legado de crueldade, afastando seus
súditos da liberdade.
Conforme Boétie não há diferenças entre os tiranos,
sendo que mesmo que cheguem ao poder de formas diferentes continuam a tirar a
liberdade de seu povo, os vendo de maneiras diferentes, mas tratando-os ainda
como escravos. Esta observação é tão presente que hoje se homens ganhassem sua
liberdade ainda estariam ligados aos elos do passado sujeitando-se a tirania
destes poucos que estão no poder, devido à forma com que esta acontece: forçada ou ilusória. Forçadas mais propriamente ditas pelo poder
armamentista e ilusórias devido a proteção que o tirano lhes proporciona.
Devido a esta força se cria consciências, estas que são levadas de gerações a gerações
como se fossem obrigações de um povo prezar pelo respeito ao líder, vendo o
mesmo com a idolatria.
Por exemplo, se dois cachorros machos que obtiveram formas diferentes de comportamento através
de sua criação, sendo que um fora criado comendo na cozinha enquanto o outro
era solto nos campos da residência, mesmo sendo irmãos a observação sobre sua
forma de agir eram divergentes, em uma passagem o mesmo realiza uma experiência
colocando os dois juntos em um mercado entre uma sopa e uma lebre, sendo que
quando soltos uma vai para o prato enquanto o outro caça a lebre, mostrando que
mesmo vindos de uma mesma família ainda sim agem conforme sua criação.
Quem provou de sua liberdade não age mais de forma
presa e consegue perceber o quanto é digno lutar por sua liberdade (leia-se o "mito da caverna" de Platão).
Não tem
consciência de liberdade quem nunca a teve, assim sendo continua a reproduzir o
que aprendeu, mesmo sendo obrigado a obedecer e cumprir o que se é proposto
somente.
Este está condicionado a realizar todas as atividades que sua
educação lhe proporciona, se tornando parte de sua natureza mesmo que esta não
seja a sua natureza provinda do homem, que nasce para ser liberto.
Portanto, “a primeira razão da servidão voluntária é o costume”. Como os pobres animais
que no início de sua domesticação mordem, debatem-se, quebram seus próprios
dentes para possuírem novamente a liberdade, os homens também creem que esta
servidão embora não seja de seu gosto deve ser vestida.
A primeira premissa para os homens servirem de
bom grado para seus tiranos é que nascem servos e são criados como tais,
vestindo a camisa e aceitando ordens, tornando facilmente os tiranos covardes e
efeminados.
Mas ressalva que é certo que com a perda da liberdade se perde a valentia, e que para que não se opere esta valentia, sabendo os tiranos que
homens livres tanto faz a derrota ou a vitória, sendo que a construção virá
após a queda, tendem a não permitir esta oportunidade de sentirem o gosto da
liberdade.
Para que estes não caiam na tentação da liberdade
se achou uma forma fácil de prendê-los a atenção, os jogos, teatros, shows que
eram proporcionados imitavam combates e contavam histórias para que estes
súditos ficassem cada dia mais preso e apaixonado por esta arte de servir para
que tenha o reconhecimento de soldado honrado, enquanto os tiranos o fazem para
que estes fiquem primeiramente iludidos com aquele mundo e segundo sempre em
forma para as batalhas que terão que travar.
Na época de reis e rainhas se pagavam
vinhos, trigos, danças para seus súditos para que estes exaltassem seu rei,
este dava migalhas a seu povo para comemorar conquistas realizadas por eles
próprios, lhes davam a comida e bebida que estes mesmos produziam como se
fossem benfeitorias para seus soldados e súditos.
Não são as armas compradas por estes tiranos que os
defendem ou defendem seus impérios, mas sim sua nação seus servos,
servos estes que não tem a capacidade de comprar brigas com outras nações, mas
entram nesta briga através de palavras ao vento destes que os comandam, mas que
não pensam na hora de matar vários de seus súditos por simples palavras que
poderiam ser evitadas
Considerações Finais
É interessante notar o quão atualizado é a ideia de
servidão voluntária evidenciada na obra de Boétie. Embora escrita há
praticamente quinhentos anos ela tranquilamente nos serve como exemplo de
análise da vida em sociedade.
Outra questão interessante de perceber e que é
bastante comum, é o fato da utilização do divertimento por parte dos
governantes para distrair o povo, para torná-los satisfeitos com o que acontece
a exemplo disso temos principalmente os eventos esportivos, que através dos
meios de comunicação acabam tendo centralidade na vida de boa parte das
pessoas. Assim, o motivo principal da existência da tirania reside nas próprias pessoas, no seu espírito de servidão voluntária.
Referências:
La Boétie, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. 2. ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009
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