A grande transformação: as origens de nossa época




Resenha da obra de Karl Polonyi


Por Welliton Resende
Siga Resende no Twitter


A civilização do século XIX se firmava em quatro instituições. A primeira era o sistema de equilíbrio de poder que, durante um século, impediu a ocorrência de qualquer guerra prolongada e devastadora entre as Grandes Potências. A segunda era o padrão internacional do ouro que simbolizava uma organização única na economia mundial. A terceira era o mercado auto-regulável, que produziu um bem-estar material sem precedentes. A quarta era o estado liberal. Nesse sentido, o próprio  estado liberal foi uma criação do mercado autoregulável. Portanto, a chave para o sistema institucional do século XIX está nas leis que governam a economia de mercado.

Em muitos países o estado liberal foi substituído por ditaduras totalitárias e a instituição central do século produção baseada em mercados livres - foi substituída por novas formas de economia. Isto nos leva à nossa tese que ainda precisa ser provada: que as origens do cataclisma repousam na tentativa utópica do liberalismo de estabelecer um sistema de mercado auto-regulável.

Uma tese como esta parece investir esse sistema de poderes quase místicos; implica, nem mais nem menos, que o equilíbrio-de-poder, o padrão-ouro e o estado liberal, esses elementos fundamentais da civilização do século XIX, em última análise, foram todos eles modelados por uma matriz comum, o mercado auto-regulável.

Do ponto de vista político, o estado centralizado era uma nova criação, estimulada pela Revolução Comercial que mudara o centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para as costas do Atlântico, compelindo, assim, os povos atrasados de grandes países agrários a se organizarem para o comércio e os negócios.

O que quer que o futuro lhes reservasse, a classe trabalhadora e a economia de mercado surgiram na história ao mesmo tempo. O horror à assistência pública, a desconfiança na ação do estado, a insistência na respeitabilidade e na autoconfiança permaneceram como características do trabalhador britânico durante gerações.

Na época da Speenharnland, porém, a verdadeira natureza do pauperismo ainda permanecia oculta à visão dos homens. Havia um consenso geral quanto à validade de uma grande população, tão grande quanto possível, pois o poder do estado consistia em homens.

De fato, foi marcante a mudança de atmosfera entre Adam Smith e Townsend. O primeiro marcou o fim de uma era que se abriu com os inventores do estado, Thomas More e Maquiavel, Lutero e Calvino; o último já pertencia ao século XIX, no qual Ricardo e Hegel descobriram, a partir de ângulos opostos, a existência de uma sociedade que não estava sujeita às leis do estado mas, ao contrário, sujeitava o estado às suas próprias leis.

A lei populacional de Malthus e a lei dos rendimentos diminuídos apresentada por Ricardo tornaram a fertilidade do homem e do solo os elementos constitutivos do novo reino cuja existência havia sido descoberta. A sociedade econômica emergira como algo separado do estado político.

Nenhum pensador chegou tão longe quanto Robert Owen no reino da sociedade industrial. Ele tinha profunda consciência da distinção entre sociedade e estado; embora não tivesse qualquer preconceito contra esse último, como ocorreria com Godwin, ele via o estado apenas por aquilo que ele podia executar: uma intervenção que afastasse da comunidade qualquer perigo mas não, enfaticamente, para a organização da sociedade.
Da mesma forma, ele não nutria qualquer animosidade contra a máquina, cujo caráter neutro ele reconhecia. Nem o mecanismo político do estado, nem o aparato tecnológico da máquina
esconderam dele o fenômeno: a sociedade. Ele rejeitava a abordagem anirnalista da
sociedade, refutando suas limitações malthusianas e ricardianas. O fulcro de seu
pensamento, porém, foi o seu afastamento do Cristianismo a quem ele acusava de
"individualização", ou de fixar no próprio indivíduo a responsabilidade pelo caráter,
negando assim, segundo Owen, a realidade da sociedade e sua influência formativa e
todo-poderosa sobre o caráter.

Na virada do século XIX - o sufrágio universal já tinha agora uma abrangência
bastante ampla - a classe trabalhadora era um fator de influência no estado
Enquanto esse sistema não é estabelecido, os liberais econômicos apelarão, sem hesitar, para a intervenção do estado a fim de estabelecê-lo e,uma vez estabelecido, a fim de mantê-lo.

O liberal econômico pode, portanto, sem qualquer contradição, pedir que o estado use a força da lei; pode até mesmo apelar para as forças violentas da guerra civil a fim de organizar as precondições de um mercado auto-regulável.

A visão grotesca do Estado de Hobbes - um Leviatã humano, cujo corpo imenso era formado por um número infinito de corpos humanos - foi eclipsada pelo construto ricardiano do mercado de trabalho; um fluxo de vidas humanas cujo abastecimento era regulado pela quantidade de alimentos à sua disposição.

Em resumo, o liberalismo econômico estava aferrado ao estado liberal, enquanto
o mesmo não ocorria com os interesses fundiários esta foi a fonte do seu significado
político permanente no continente, que produziu as correntes cruzadas da política
prussiana sob Bismarck, que alimentou a revanche clerical e militarista na França, que
garantiu a influência da aristocracia feudal na corte do império dos Habsburgs, que fez da
Igreja e do exército os guardiães dos tronos em derrocada.

No século XIX, os rompimentos da paz, se feitos por multidões armadas, eram considerados rebelião incipiente e um grande perigo para o estado: as ações entravam em colapso e não havia mais fundo para os preços.

Um orçamento sólido e condições estáveis de crédito interno pressupunham câmbios externos estáveis; os câmbios não podiam ser estáveis a menos que o crédito doméstico fosse seguro. e as finanças internas do estado estivessem equilibrada. Resumindo, a custódia gêmea do banqueiro compreendia uma sólida finança doméstica e a estabilidade externa do meio circulante.

Nada era mais simples do que mudar uma denominação pela outra através do uso do
mercado cambial, uma instituição que não poderia deixar de funcionar, uma vez que,
felizmente, ela não estava sob o controle do estado ou dos políticos.

Os estados 'e os impérios são considerados congenitamente imperialistas, eles devorarão seus vizinhos sem qualquer compulsão moral. Permitir que o poder do estado e
os interesses comerciais se fundissem ão era uma idéia do século XIX; pelo contrário, os
primeiros estadistas vitorianos já haviam proclamado a independência do político e do
econômico como uma máxima de comportamento internacional.

O princípio da não intervenção do estado nos casos de negócios privados era mantido não apenas internamente.
A responsabilidade coletiva pelo meio circulante criou o indestrutível arcabouço dentro do qual os negócios e os partidos, a indústria e o estado se ajustavam à tensão.

Em todos os lugares a separação entre a esfera econômica e a política foi o resultado do mesmo tipo de desenvolvimento. Tanto na Inglaterra como no continente, os pontos de partida foram a criação de um mercado de trabalho competitivo e a democratização do estado político.

A Revolução Francesa e os seus assignats* mostraram que o povo podia destruir
a moeda, e a história dos estados americanos não ajudava a dissipar essa suspeita.
Durante a década de 1920, de acordo com Genebra, as questões de organização social tinham que ser inteiramente subordinadas às necessidades de restauração da moeda. A deflação era a necessidade básica e as instituições internas tinham que se ajustar da melhor maneira que pudessem. Enquanto isto era preciso adiar até mesmo a restauração dos mercados internos livres e do estado liberal.

As contra-revoluções eram o retorno habitual do pêndulo político em direção a um
estado de coisas que havia sido perturbado violentamente.

Na verdade, como sabemos agora, o comportamento do homem, tanto em seu
estado primitivo como através do curso da história, foi praticamente o oposto do
comportamento implícito nessa perspectiva. A frase de Frank H. Knight, "nenhum motivo
especificamente humano é econômico".

O poder do estado não era levado em conta, pois quanto menor ele fosse mais facilmente
funcionaria o mecanismo de mercado. Nem os eleitores, nem os proprietários, nem os
produtores, nem os consumidores podiam ser responsabilizados por essas brutais
restrições à liberdade que resultaram na ocorrência do desemprego e da destituição.

Qualquer indivíduo decente podia se considerar isento de qualquer responsabilidade por
atos de compulsão por parte de um estado que ele, pessoalmente, rejeitava; ou pelo
sofrimento econômico inflingido à sociedade e que não o beneficiava pessoalmente. Ele
"pagava as suas contas", "não devia a ninguém", e não se envolvia nos males do poder e
do valor econômico. Ele se sentia tão isento dessa responsabilidade que negava a sua
realidade em nome da própria liberdade.

Comentários