quinta-feira, 5 de julho de 2018

Grandes pensadores: Marcelo Lopes de Souza


(Souza, 1995)

"A conformação do terreno é de grande importância nas batalhas. Assim sendo, apreciar a situação do inimigo , calcular as distâncias e o grau de dificuldades do terreno, quanto à forma de se poder controlar  a vitória, são virtudes de general de categoria. Quem combate com inteiro conhecimento  destes fatores vence, de certeza; quem não o faz é, certamente, derrotado" (Sun Tzu, A arte da guerra)


A guerra, enquanto "prolongamento" da política por outros meios, para usar a célebre fórmula de outro estudioso que reconheceu plenamente a importância essencial do espaço para  atividade guerreira, o general prussiano Carl Von Clausewitz, constitui, ela própria, enquanto uma ferramenta da política, todavia apenas uma situação-limite; o seu valor instrumental para a guerra, para esse "ato de força para impor a nossa vontade ao adversário" (Clausewitz, 1983:9), não esgota o significado político de espaço.

Na verdade, consoante o pensamento de Hannah Arendt, parece mesmo que a guerra,  ou a violência em geral, é inclusive várias vezes um sintoma de perda de poder: "(...) toda diminuição de poder é um convite à violência- quando pouco porque aqueles que detém o poder e o sentem escorregar por entre as mãos, sejam eles o governo ou os governados, encontraram sempre dificuldade em resistir à tentação de substitui-lo pela violência (ARENDT, 1985:49).

O território, objeto deste ensaio, é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. Sobre o poder, Hanna Arendt disse que ele "corresponde à habilidade humana  de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém  está 'no poder' estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. No momento em que o grupo, de onde originara-se o poder, desaparece, 'o seu poder' também desaparece" (ARENDT,1985:24).

Por isso é que Hanna Arendt é categórica quando afirma que "(...) politicamente falando, é insuficiente dizer não serem o poder e a violência a mesma coisa. O poder e a violência se opõem: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente" (ARENDT,1985:30).

No que concerne ao conceito de território, é imperioso que saibamos despi-lo do manto de imponência com o qual se encontra, via de regra, adornado. A palavra território normalmente evoca o "território nacional" e faz pensar no Estado, em grandes espaços, em sentimentos patrióticos, em governo, em dominação, em guerras...

A bem da verdade, o território pode ser entendido também à escala nacional e em associação com o Estado, no entanto, ele não precisa e nem deve ser reduzido a essa escala ou à associação com a figura do Estado. Territórios existem e são construídos (e desconstruídos) dentro de escalas temporais as mais diferentes: séculos, décadas, meses, anos ou dias; territórios podem ter um caráter permanente, mas também podem ter uma existência periódica, cíclica.

VENTOS DE RENOVAÇÃO TÊM SOPRADO...

O território surge como o espaço concreto em si, que é apropriado, ocupado por um grupo social. A ocupação do território é vista como algo gerador de raízes e identidade. E mais: os limites do território não seriam, é bem verdade, imutáveis- pois as fronteiras podem ser alteradas, comumente pela força bruta-, mas cada espaço seria, enquanto território, território durante todo o tempo, pois apenas a durabilidade poderia, é claro, ser geradora de identidade sócio-espacial, identidade na verdade não apenas com o espaço físico, concreto, mas com o território e, por tabela, com o poder controlador desse território.

Outra forma de se abordar a temática da territorialidade, mas abrangente e crítica, é vê-la como um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite uma alteralidade: a diferença entre "nós" e os "outros".

Territórios, que são no fundo relações sociais projetadas no espaço que espaços concretos podem formar-se e dissolver-se, constituir-se e dissipar-se de modo relativamente rápido, ser antes instáveis que estáveis e o substrato espacial permanecer o mesmo.

Os exemplos mais interessantes de "territorialidades flexíveis" são os territórios da prostituição feminina ou masculina, onde durante o dia as ruas são tomadas por outro tipo de paisagem humana, a  apropriação de espaços públicos por grupos e também camelôs e, por fim, a do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

Há também a necessidade de se superar um outra limitação embutida na concepção clássica de território: a exclusividade de um poder em relação a um dado território. Por exemplo, em um mesmo local temos a União, o Estado e um Município.

Naturalmente que se concorda com RAFFESTIN (1993) em que espaço é anterior ao território. Sem dúvida, sempre que houver homens em interação com um espaço, primeiramente transformando a natureza através do trabalho, e depois criando continuamente valor ao modificar e retrabalhar o espaço social, estar-se-á também diante de território, e não só um espaço econômico: é inconcebível que um espaço que tenha sido alvo de valorização pelo trabalho possa deixar de estar territorializado por alguém.

Assim como o poder é onipresente na relações sociais, o território está presente na espacialidade social. Se todo território pressupõe um espaço social, nem todo espaço social é um território: pense-se no caso extremo de uma cidade-fantasma, testemunho de uma antiga civilização, outrora fervilhante de vida e mesmo esplendorosa, não sendo mais território de quem quer que seja.

Assim, território de fato torna-se, automaticamente, quase que sinônimo de espaço social. Território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim campo de forças, as relações de poder especialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial.

O território não é simplesmente uma variável estratégica em sentido político-militar; o uso e controle do território, da mesma maneira que a repartição real de poder, devem ser elevados a um plano de grande relevância também quando da formulação de estratégias de desenvolvimento sócio-espacial em sentido amplo, não meramente econômico-capitalístico, isto é, que contribuam para uma maior justiça social e não se limitem a clamar por crescimento econômico e modernização tecnológica.

Clamar por "participação", por "liberdade" etc., no contexto do modelo civilizatório capitalista, marcado por contradições de classe, por uma fundamental assimetria a separar dominantes e dominados, equivale, das duas uma: ou fazer demagogia política, ou a apontar, na prática, para melhorias cosméticas, sem atentar o suficiente as barreiras existentes no bojo da sociedade instituída.

Autonomia: esta palavra oriunda do grego, significa singelamente, o poder de uma coletividade se reger por si própria, por leis próprias. Uma sociedade autônoma é aquela que logra defender e gerir livremente seu território, catalisador (incentivo,fomento, impulso) de uma identidade cultural e ao mesmo tempo continente (age com moderação) dos recursos, recursos cuja acessibilidade se dá, potencialmente, de maneira igual para todos.  Uma sociedade autônoma não é uma sociedade "sem poder", o que aliás seria impossível.

"Desenvolvimento passa pelo princípio da autonomia"

No entanto, indubitavelmente, a plena autonomia é incompatível com a existência de um "Estado" enquanto instância de poder centralizadora e separada do restante da sociedade (CASTORIADIS,  1990). Quanto ao território, já se viu que este se define a partir de dois ingredientes: o espaço e o poder.

A autonomia seria a defesa de um território, enquanto expressão da manutenção de um modo de vida, de recursos vitais para a sobrevivência do grupo, de uma identidade ou de liberdade de ação.

SOUZA, Marcelo Lopes de. O território: sobre o espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná et al (Orgs). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. (p. 77-116).

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