Por RICARDO ANTUNES e GIOVANNI ALVES
1. As mutações no mundo do trabalho:
heterogeneidade, fragmentação e complexificação (FHC)
Se a classe trabalhadora não é idêntica àquela
existente em meados do século passado, ela também não está em vias de
desaparição, nem ontologicamente perdeu seu sentido estruturante. A classe trabalhadora hoje compreende a totalidade dos
assalariados (homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção). Mas ela vem presenciando um
processo multiforme, cujas principais tendências indicaremos a seguir:
1) Com
a retração do binômio taylorismo/fordismo, vem ocorrendo uma redução do proletariado industrial, fabril,
tradicional, manual, estável e especializado, herdeiro da era da indústria
verticalizada de tipo taylorista e fordista. Esse proletariado vem diminuindo com a reestruturação produtiva do
capital, dando lugar a formas mais desregulamentadas de trabalho,
reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estáveis que se estruturavam
por meio de empregos formais.
Com o desenvolvimento da lean production (PRODUÇÃO
ENXUTA) e das formas de horizontalização do capital produtivo, bem como
das modalidades de flexibilização e desconcentração do espaço físico produtivo,
da introdução da máquina informatizada, como a “telemática” (que permite
relações diretas entre empresas muito distantes), tem sido possível constatar uma redução do proletariado estável,
herdeiro da fase taylorista/fordista.
2) Há,
entretanto, contrariamente à tendência
anteriormente apontada, outra muito significativa e que se caracteriza pelo aumento do novo proletariado fabril e
de serviços, em escala mundial, presente nas diversas modalidades de trabalho precarizado. São os terceirizados, subcontratados, part-time,
entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em escala global. Anteriormente,
estes postos de trabalho eram prioritariamente preenchidos pelos imigrantes, como os gastarbeiters na
Alemanha, o lavoro nero na Itália, os chicanos nos EUA, os dekasseguis
no Japão, entre tantos outros exemplos. Mas, hoje, sua expansão atinge
também os trabalhadores remanescentes
da era da especialização taylorista/fordista, cujas atividades vêm
desaparecendo cada vez mais. Com a desestruturação crescente do Welfare
State nos países do Norte e com a ampliação do desemprego estrutural, os
capitais transnacionais implementam alternativas de trabalho crescentemente
desregulamentadas, “informais”, de que são exemplo as distintas formas de
terceirização.
Esta
processualidade atinge, também, ainda que de modo diferenciado, os países
subordinados de industrialização intermediária, como Brasil, México, Argentina, entre tantos outros da América Latina
que, depois de uma enorme expansão de
seu proletariado industrial nas décadas passadas, passaram a presenciar
significativos processos de desindustrialização, tendo como resultante a
expansão do trabalho precarizado, parcial, temporário, terceirizado,
informalizado etc., além de enormes níveis de desemprego, de trabalhadores(as)
desempregados(as).
3) Há uma
outra tendência de enorme significado no mundo do trabalho contemporâneo:
trata-se do aumento significativo do
trabalho feminino, que atinge mais
de 40% da força de trabalho em diversos países avançados, e que tem sido
absorvido pelo capital, preferencialmente no universo do trabalho part-time,
precarizado e desregulamentado.
No Reino Unido, por exemplo, desde 1998 o contingente feminino. tornou-se
superior ao masculino, na composição da força de trabalho britânica. Esta expansão do trabalho feminino tem, entretanto, um
movimento inverso quando se trata da temática salarial, na qual os níveis de remuneração
das mulheres são em média inferiores àqueles recebidos pelos trabalhadores,
o mesmo ocorrendo com relação aos direitos sociais e do trabalho, que
também são desiguais.
Muitos
estudo têm apontado que, na nova divisão
sexual do trabalho, as atividades de concepção ou aquelas de capital
intensivo são realizadas predominantemente pelos homens, ao passo que
aquelas de maior trabalho intensivo, freqüentemente com menores níveis de
qualificação, são preferencialmente destinadas às mulheres trabalhadoras (e
também a trabalhadores(as) imigrantes, negros(as), indígenas etc.) (Hirata,
2002).
4) É
perceptível também, particularmente nas últimas décadas do século XX, uma significativa expansão dos assalariados
médios no “setor de serviços”, que inicialmente incorporou parcelas
significativas de trabalhadores expulsos do mundo produtivo industrial, como
resultado do amplo processo de reestruturação produtiva, das políticas neoliberais
e do cenário de desindustrialização e privatização. Nos EUA, esse
contingente ultrapassa a casa dos 70%, tendência que se assemelha à do
Reino Unido, da França, Alemanha, bem como das principais economias
capitalistas.
Se,
entretanto, inicialmente se deu uma forte absorção, pelo setor de serviços,
daqueles(as) que se desempregavam do mundo industrial, é necessário acrescentar
que as mutações organizacionais, tecnológicas
e de gestão também afetaram
fortemente o mundo do trabalho nos
serviços, que cada vez mais se submetem à racionalidade do capital e à
lógica dos mercados. Como exemplos, poderíamos lembrar a enorme redução do
contingente de trabalhadores bancários no Brasil dos anos de 1990, em
função da reestruturação do setor, ou ainda daqueles serviços públicos
que foram privatizados e que geraram enorme desemprego.
Com a inter-relação
crescente entre mundo produtivo e setor de serviços, vale enfatizar que, em
conseqüência dessas mutações, várias atividades
no setor de serviços anteriormente consideradas improdutivas tornaram-se
diretamente produtivas, subordinadas à lógica exclusiva da racionalidade
econômica e da valorização do capital. Uma conseqüência positiva dessa
tendência foi o significativo aumento
dos níveis de sindicalização dos assalariados médios, ampliando o universo dos
trabalhadores(as) assalariados(as), na nova e ampliada configuração da classe
trabalhadora.
5) Outra
tendência presente no mundo do trabalho é a crescente exclusão dos jovens, que atingiram a idade de ingresso no
mercado de trabalho e que, sem perspectiva de emprego, acabam muitas vezes engrossando
as fileiras dos trabalhos precários, dos desempregados, sem perspectivas de
trabalho, dada a vigência da sociedade do desemprego estrutural.
6)
Paralelamente à exclusão dos jovens vem ocorrendo também a exclusão dos trabalhadores considerados “idosos” pelo capital,
com idade próxima de 40 anos e que,
uma vez excluídos do trabalho, dificilmente conseguem reingresso no mercado de
trabalho. Somam-se, desse modo, aos contingentes do chamado trabalho informal,
aos desempregados, aos “trabalhos voluntários” etc. O mundo do trabalho atual
tem recusado os trabalhadores herdeiros da “cultura fordista”, fortemente especializados, que são substituídos
pelo trabalhador “polivalente e
multifuncional” da era toyotista.
E,
paralelamente a esta exclusão dos “idosos” e jovens em idade pós-escolar, o
mundo do trabalho, nas mais diversas partes do mundo, no Norte e no Sul, tem se
utilizado da inclusão precoce e
criminosa de crianças no mercado de trabalho, nas mais diversas atividades
produtivas.
7) Como
desdobramento destas tendências anteriormente apontadas, vem se desenvolvendo
no mundo do trabalho uma crescente
expansão do trabalho no chamado “Terceiro Setor”, assumindo uma forma
alternativa de ocupação, por intermédio de empresas de perfil mais comunitários,
motivadas predominantemente por formas de trabalho
voluntário, abarcando um amplo leque de atividades, nas quais predominam aquelas
de caráter assistencial, sem fins
diretamente mercantis ou lucrativos e que se desenvolvem relativamente à margem
do mercado.
A
expansão desse segmento é um desdobramento
direto da retração do mercado de trabalho industrial e de serviços, num
quadro de desemprego estrutural. Esta forma de atividade social, movida
predominantemente por valores não-mercantis, tem tido certa expansão, por meio
de trabalhos realizados no interior das ONGs e de outros organismos ou
associações similares. Trata-se, entretanto, de uma alternativa extremamente
limitada para compensar o desemprego estrutural, não se constituindo,
em nosso entendimento, numa alternativa efetiva e duradoura ao mercado de
trabalho capitalista.
O
“Terceiro Setor” acaba, em decorrência de sua próxima gênese e configuração,
exercendo um papel funcional ao mercado,
uma vez que incorpora parcelas de trabalhadores desempregados pelo capital e
abandonados pela desmontagem do Welfare State. Se esse segmento tem
a positividade de freqüentemente atuar à margem da lógica mercantil, parece-nos,
entretanto, um equívoco entendê-lo como
uma real alternativa duradoura e capaz de substituir a sociedade capitalista e
de mercado.
Essa
alternativa tem o papel, em última instância, de funcionalidade ao sistema. Em
suma: se o “Terceiro Setor” vem incorporando trabalhadores(as) que foram
expulsos do mercado de trabalho formal e passam a desenvolver atividades
não-lucrativas, não-mercantis, reintegrando-os, este pode ser
considerado seu traço positivo. Ao incorporar – ainda que de modo também
precário – aqueles que foram expulsos do mercado formal de trabalho, estes
seres sociais se vêem não mais como desempregados, plenamente excluídos, mas
realizando atividades efetivas, dotadas de algum sentido social e útil. Mas
devemos reiterar que essas atividades são funcionais ao sistema, que hoje se
mostra completamente incapaz de absorver os desempregados e precarizados.
Com o
desmonte do Welfare State e dos direitos sociais adquiridos ao longo da
vigência da sociedade capitalista, essas atividades acabam suprindo em alguma
medida as lacunas sociais que foram se abrindo. Como mecanismo minimizador do
desemprego estrutural, elas cumprem uma função, ainda que limitadíssima. Porém,
quando são concebidas como um momento efetivo de transformação social,
convertem-se, em nosso entendimento, em uma nova forma de mistificação,que imagina ser capaz de alterar o sistema
de capital em sua lógica, processo este que, sabemos, é muito mais
complexo.
8) Outra
tendência que gostaríamos de apontar é a da expansão do trabalho em domicílio, permitida pela desconcentração
do processo produtivo, pela expansão de pequenas e médias unidades produtivas. Por
meio da telemática, com a expansão
das formas de flexibilização e precarização
do trabalho, com o avanço da horizontalização do capital produtivo, o
trabalho produtivo doméstico vem presenciando formas de expansão em várias
partes do mundo.
Sabemos
que a telemática (ou teleinformática) nasceu da convergência entre os sistemas
de telecomunicações por satélite e por cabo, juntamente com as novas tecnologias
de informação e a microeletrônica, possibilitando enorme expansão e a
aceleração das atividades das transnacionais. Essa modalidade de trabalho tem
se ampliado em grande escala, de que são exemplos
a Benetton, a Nike, entre as inúmeras empresas que vêm aumentando as
atividades de trabalho produtivo realizado no espaço domiciliar ou em pequenas
unidades produtivas, conectadas ou integradas às empresas. Desse modo, o trabalho produtivo em domicílio mescla-se
com o trabalho reprodutivo doméstico, aumentando as formas de exploração do
contingente feminino.
9) Há
ainda uma última tendência que vamos indicar: no contexto do capitalismo
mundializado, dado pela transnacionalização do capital e de seu sistema
produtivo, a configuração do mundo do trabalho
é cada vez mais transnacional. Com a reconfiguração, tanto do espaço quanto
do tempo de produção, novas regiões
industriais emergem e muitas desaparecem, além de inserirem-se cada vez
mais no mercado mundial, como a indústria
automotiva, na qual os carros mundiais praticamente substituem o carro
nacional.
Esse
processo de mundialização produtiva desenvolve uma classe trabalhadora que mescla sua dimensão local, regional,
nacional com a esfera internacional. Assim como o capital se
transnacionalizou, há um complexo processo de ampliação das fronteiras no interior do mundo do trabalho. Assim
como o capital dispõe de seus organismos internacionais, a ação dos
trabalhadores deve ser cada vez mais internacionalizada.
Podemos
exemplificar com a greve dos trabalhadores metalúrgicos da General Motors,
nos EUA, de junho de 1998, iniciada em Michigan, em uma pequena unidade
estratégica da empresa e que teve repercussões profundas em vários países.
A ampliação do movimento foi crescente, na medida em que freqüentemente
faltavam equipamentos e peças em diversas unidades da empresa. A unidade
produtiva em Flint, que desencadeou a
greve e que fornecia acessórios para os automóveis, ao paralisar suas
atividades, afetou as demais unidades, paralisando praticamente todo o processo
produtivo da GM, por falta de equipamentos e peças.
Além de
todas as transformações indicadas anteriormente, a classe trabalhadora também se conforma mundialmente. É este,
portanto, o desenho compósito, diverso e heterogêneo que caracteriza a nova
conformação da classe trabalhadora, a classe-que-vivedo-trabalho: além das clivagens entre os
trabalhadores estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e idosos,
nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados,
“incluídos e excluídos” etc., temos
também as estratificações e fragmentações que se acentuam em função do processo
crescente de internacionalização do capital.
RICARDO ANTUNES e GIOVANNI ALVES |
1.1. A nova forma de ser do trabalho
Desse
modo, para se compreender a nova forma de ser do trabalho, a classe
trabalhadora hoje, é preciso partir de uma concepção
ampliada de trabalho. Ela compreende a totalidade
dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de
trabalho, não se restringindo aos trabalhadores manuais diretos, incorporando
também a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende
sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário.
Ela
incorpora tanto o núcleo central do
proletariado industrial, os trabalhadores produtivos que participam
diretamente do processo de criação de mais-valia e da valorização do capital
(que hoje, como vimos acima, transcende em muito as atividades industriais,
dada a ampliação dos setores produtivos nos serviços) e abrange também os trabalhadores improdutivos, cujo
trabalhos não criam diretamente mais-valia, uma vez que são utilizados
como serviço, seja para uso público, como os serviços públicos, seja
para uso capitalista. Podemos também acrescentar que os trabalhadores
improdutivos, criadores de antivalor no processo de trabalho, vivenciam
situações muito aproximadas com aquelas experimentadas pelo conjunto dos
trabalhadores produtivos.
A classe
trabalhadora, hoje, também incorpora o proletariado
rural, que vende a sua força de trabalho para o capital, de que são
exemplos os assalariados das regiões agroindustriais, e incorpora também o proletariado precarizado, o
proletariado moderno, fabril e de serviços, part-time, que se
caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em
expansão na totalidade do mundo produtivo. Inclui, ainda, em nosso
entendimento, a totalidade dos
trabalhadores desempregados.
Naturalmente,
em nosso desenho analítico não fazem parte da classe trabalhadora moderna os
gestores do capital, pelo papel central que exercem no controle, na gestão
e no sistema de mando do capital. Estão excluídos também os pequenos
empresários, a pequena burguesia urbana e rural que é proprietária e
detentora, ainda que em pequena escala, dos meios de sua produção. E estão
excluídos também aqueles que vivem de juros e da especulação.
Compreender,
portanto, a classe-que-vive-do-trabalho, a classe trabalhadora hoje, de modo
ampliado, implica entender este conjunto de seres sociais que vivem da venda da
sua força de trabalho, que são assalariados e desprovidos dos meios de
produção. Como todo trabalho produtivo é assalariado, mas nem todo trabalhador
assalariado é produtivo, uma noção contemporânea de classe trabalhadora deve
incorporar a totalidade dos(as) trabalhadores(as) assalariados(as).
A classe trabalhadora,
portanto, é mais ampla que o
proletariado industrial produtivo do século passado, embora este ainda se
constitua em seu núcleo fundamental.
Ela tem, portanto, uma conformação mais fragmentada,
mais heterogênea, mais complexificada (FHC). Que somente pode
ser apreendida se partirmos de uma noção ampliada de trabalho.
E
apresentar essa processualidade multiforme é muito diferente, como vimos, do
que afirmar o fim do trabalho ou até mesmo o fim da classe trabalhadora. O que,
entretanto, torna-se relevante é entender as formas e os mecanismos do
envolvimento no interior da fábrica moderna.
2. A
fábrica moderna e as novas formas do envolvimento
2.1. A dimensão ontológica (estudo do ser) do envolvimento do trabalho
Para
compreendermos a significação ontológica do envolvimento do trabalho sob a
produção capitalista é importante compreender o conceito de subsunção, utilizado por Marx e seu desdobramento em formal (FORDISMO) e real (TOYOTISMO).
Em primeiro lugar, o termo “subsunção” indica e caracteriza a relação entre o trabalho e o capital.
Subsunção expressa
que a força de trabalho vem a ser, ela
mesma, incluída e como que transformada em capital: o trabalho constitui o
capital. Constitui-o negativamente,
pois é nele integrado no ato de venda da força de trabalho, pelo qual o
capital adquire, com essa força, o uso dela; uso que constitui o próprio
processo capitalista de produção.
Na verdade,
nas relações trabalho/capital, além e apesar de o trabalho “subordinar-se” ao capital,
ele é um elemento vivo, em permanente medição de forças, gerando conflitos e oposições ao outro
pólo formador da unidade que é a relação e o processo social capitalista.
Dessa
maneira, a
força de trabalho, além de ser um dos elementos constitutivos da relação
social que a aprisiona e “submete”, é também um elemento que nega aquela relação e por isso mesmo sua
“subordinação” precisa ser reiteradamente afirmada.
É neste processo que o
capital visa a superar uma subordinação (melhor: subsunção) meramente formal,
transformando-a em real (subsunção real), com o corolário de que a transformação
da força de trabalho em capital acaba por consolidar-se socialmente.
Desde a
sua origem, o modo capitalista de produção pressupõe um envolvimento
operário, ou seja, formas de captura
da subjetividade operária pelo capital, ou, mais precisamente, da sua
subsunção à lógica do capital (observando que o termo “subsunção” não é
meramente “submissão” ou “subordinação”, uma vez que possui um conteúdo dialético
– mas é algo que precisa ser
reiteradamente afirmado).
O que
muda é a forma de implicação do elemento
subjetivo na produção do capital:
A)sob o taylorismo/fordismo, ainda era meramente formal
B)Sob o toyotismo tende a ser real, com o capital buscando capturar a subjetividade
operária de modo integral.
2.2. Formas do envolvimento operário no fordismo/taylorismo
Em
primeiro lugar, no taylorismo e no fordismo, a “integralização” da subsunção da subjetividade operária à lógica do
capital, a “racionalização total”, ainda era meramente formal, já que, como salientou Gramsci,
na linha de montagem, as operações produtivas reduziam-se ao “aspecto físico
maquinal” (Gramsci, 1985).
O fordismo ainda era, de certo modo, uma
“racionalização inconclusa”, pois,
apesar de instaurar uma sociedade “racionalizada”, não conseguiu incorporar à racionalidade capitalista na produção as variáveis
psicológicas do comportamento operário.
Já o toyotismo procura desenvolver por meio dos
mecanismos de comprometimento operários, que aprimoram o controle do capital na
dimensão subjetiva. Em
contrapartida, o toyotismo não possui a
pretensão de instaurar uma sociedade “racionalizada”, mas apenas uma “fábrica
racionalizada”.
É a partir do processo de produção intrafábrica (e na
relação entre empresas) que ele procura reconstituir a hegemonia do capital, instaurando,
de modo pleno, a subsunção real da subjetividade operária pela lógica do
capital.
Ele procura, mais do que nunca,
reconstituir algo que era fundamental na manufatura: o “velho nexo psicofísico
do trabalho profissional qualificado – a participação ativa da inteligência, da
fantasia, da iniciativa do trabalho” (Gramsci, 1985).
O toyotismo restringe o nexo da hegemonia do
capital à produção, recompondo, a partir daí, a articulação entre consentimento operário e controle do
trabalho.
É por isso que, mais do que nunca, salienta-se a centralidade
estratégica de seus protocolos organizacionais e institucionais. É apenas sobre
eles que se articula a hegemonia do capital na produção.
Este é, com certeza,
seu “calcanhar-de-aquiles”, na
medida em que, ao reduzir o nexo da
hegemonia do capital apenas à esfera intrafabril (ou entre empresas), não o ampliando para além da cadeia produtiva
central, para o corpo social total, o toyotismo permanece limitado em sua perspectiva política,
principalmente se o compararmos ao arranjo fordista. Por isso, sob o toyotismo, agudiza-se a contradição entre racionalidade
intra-empresa e irracionalidade societal.
2.3. O toyotismo como uma nova forma do envolvimento operário
Com o
toyotismo, tende a ocorrer uma racionalização do trabalho que, por se instaurar
sob o capitalismo manipulatório,
constitui-se, em seus nexos essenciais, por meio da inserção engajada do trabalho assalariado na produção do capital
(o que Coriat denominou de “engajamento estimulado”).
Ocorre uma nova orientação na constituição da
racionalização do trabalho, com a produção capitalista, sob as injunções da
mundialização do capital, exigindo,
mais do que nunca, a captura integral
da subjetividade operária (o que explica, portanto, os impulsos
desesperados – e contraditórios – do capital para conseguir a parceria com o
trabalho assalariado).
É claro
que a operação de captura da subjetividade operária pela lógica do capital é
algo posto – e reposto – pelo modo de produção capitalista. Ela é intrínseca à
própria subsunção do trabalho ao capital. Só que é sob o toyotismo que a captura da subjetividade operária adquire o seu
pleno desenvolvimento, um desenvolvimento real e não apenas formal.
Apesar de o toyotismo pertencer à mesma
lógica de racionalização do trabalho do taylorismo/fordismo, o que implica
considerá-lo uma continuidade com respeito a ambos, ele
tenderia, em contrapartida, a surgir como
um controle do elemento subjetivo da produção capitalista que estaria
posto no interior de uma nova subsunção real do trabalho ao capital – o
que seria uma descontinuidade com relação ao taylorismo/fordismo.
Na
verdade, a introdução da maquinaria
complexa, das novas máquinas informatizadas que se tornam inteligentes, ou
seja, o surgimento de uma nova base
técnica do sistema sociometabólico do capital, que propicia um novo salto da subsunção real do trabalho ao
capital, exige, como pressuposto formal ineliminável, os princípios do
toyotismo, no qual a captura da subjetividade operária é uma das
precondições do próprio desenvolvimento da nova materialidade do capital.
As
novas tecnologias microeletrônicas na produção, capazes de promover um novo salto
na produtividade do trabalho, exigiriam, como pressuposto formal, o novo
envolvimento do trabalho vivo na produção capitalista.
Sob o toyotismo, a alienação (ou estranhamento/Entfremdung)
do trabalho encontra-se, em sua essência, preservada. Ainda
que fenomenicamente minimizada pela redução da separação entre a elaboração e a
execução, pela redução dos níveis hierárquicos no interior das empresas,
a subjetividade que emerge na fábrica ou nas esferas produtivas de ponta tende
a ser a expressão de uma existência inautêntica e estranhada, para
recorrer à formulação de N. Tertulian (1996).
Apesar de
o operário da fábrica toyotista contar com maior “participação” nos projetos que nascem das discussões dos círculos
de controle de qualidade, com maior “envolvimento”
dos trabalhadores, a subjetividade que então se manifesta encontra-se
estranhada com relação ao que se produz e para quem se produz.
Se o
fordismo expropriou e transferiu o savoir-faire
do operário para a esfera da gerência científica, para os níveis de
elaboração, o toyotismo
tende a re-transferi-lo para a força de trabalho, mas o faz visando a
apropriar-se crescentemente da sua dimensão intelectual, das suas
capacidades cognitivas, procurando envolver mais forte e intensamente a
subjetividade operária. Os trabalhos em equipes, os círculos de
controle, as sugestões oriundas do chão
da fábrica, são recolhidos e apropriados pelo capital nessa fase de
reestruturação produtiva.
Suas idéias
são absorvidas pelas empresas, após uma análise e comprovação de sua
exeqüibilidade e vantagem (lucrativa) para o capital. Mas o processo não se
restringe a essa dimensão, uma vez que parte
do saber intelectual do trabalho é transferida para as máquinas informatizadas,
que se tornam mais inteligentes. Como a máquina não pode suprimir o
trabalho humano, ela necessita de uma maior interação entre a
subjetividade que trabalha e o novo maquinário inteligente.
Surge,
portanto, o envolvimento interativo que
aumenta ainda mais o estranhamento do trabalho, ampliando as formas
modernas de fetichismo, distanciando ainda mais a subjetividade do exercício de
uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.
Na verdade, com a aparência
de um despotismo mais brando, a
sociedade produtora de mercadorias torna, desde o seu nível microcósmico, dado
pela fábrica toyotista, ainda mais profunda e interiorizada a
condição do estranhamento presente na subjetividade operária e dissemina novas objetivações fetichizadas
que se impõem à classe-que-vive-do-trabalho.
Um
exemplo forte é dado pela necessidade crescente
de qualificar-se melhor e preparar-se mais para conseguir Trabalho. Parte importante do “tempo livre” dos
trabalhadores está crescentemente voltada para adquirir “empregabilidade”,
palavra-fetiche que o capital usa para transferir aos trabalhadores as
necessidades de sua qualificação, que anteriormente eram em grande parte
realizadas pelo capital (ver Bernardo, 2001).
3. Dimensões da alienação/estranhamento e
do fetichismo capitalista
Como
salientamos anteriormente, naquela parcela aparentemente mais “estável” e
inserida da força de trabalho que exerce o trabalho
intelectual, o estranhamento
permanece e mesmo se complexifica nas atividades de ponta do ciclo
produtivo.
No pólo mais intelectualizado da classe trabalhadora, as formas de
fetichismo têm uma concretude particularizada, mais complexificada (mais “humanizada”
em sua essência desumanizadora), dada pelas novas formas de “envolvimento”
e interação entre trabalho vivo e maquinaria informatizada. É o que destacamos
em nossa análise sobre as formas de envolvimento operário na fábrica toyotista.
A alienação/estranhamento é ainda mais
intensa nos estratos precarizados
da força humana de trabalho, que vivenciam as condições mais desprovidas de direitos
e em condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho part-time,
temporário, e precarizado.
Sob a condição da precarização, o estranhamento assume a forma ainda mais intensificada e mesmo
brutalizada, pautada pela perda
(quase) completa da dimensão de humanidade. Nos estratos mais penalizados
pela precarização/exclusão do trabalho, o estranhamento e o fetichismo
capitalista são diretamente mais desumanizadores e bárbaros em suas
formas de vigência.
E é o que
estamos presenciando hoje, intensamente, em tantas partes do mundo e em
particular na América Latina. Da
explosão de Los Angeles, em 1992, às explosões de Seattle, em 1999, assistimos
a muitas manifestações de revolta contra os estranhamentos, daqueles que são
precarizados ou mesmo expulsos do mundo do trabalho e, conseqüentemente,
impedidos de vivenciarem uma vida dotada de algum sentido.
Sob a
condição da separação absoluta do trabalho, a alienação assume a forma de perda
de sua própria unidade: trabalho e lazer, meios e fins, vida pública e vida
privada, entre outras formas de disjunção dos elementos de unidade
presentes na sociedade do trabalho.
Expandem-se, desse modo, as formas
de alienação dos que se encontram à margem do processo de trabalho.
Contrariamente à interpretação que vê a transformação tecnológica movendo-se em
direção à idade de ouro de um capitalismo saneado, próspero e harmonioso,
estamos presenciando um processo histórico de desintegração, que se dirige para
um aumento do antagonismo, o aprofundamento das contradições do capital.
Quanto mais o sistema tecnológico da
automação e das novas formas de organização do trabalho avança, mais a
alienação tende em direção a limites absolutos.
Quando se
pensa na enorme massa de trabalhadores desempregados, as formas de absolutização
da alienação são diferenciadas. Variam da rejeição da vida social, do
isolamento, da apatia e do silêncio (da maioria) até a violência e agressão
diretas.
Aumentam os focos de contradição entre os desempregados e a
sociedade como um todo, entre a “racionalidade” no âmbito produtivo e a
“irracionalidade” no universo societal. Os conflitos tornam-se um problema
social, mais do que uma questão empresarial, transcendendo o âmbito fabril e
atingindo o espaço público e societal.
Muitas manifestações de
revolta contra os estranhamentos ocorreram entre aqueles que foram
expulsos do mundo do trabalho e, conseqüentemente, impedidos de ter uma vida
dotada de algum sentido.
A desumanização
segregadora leva ao isolamento individual, às formas de criminalidade, à
formação de guetos de setores excluídos, até a formas mais ousadas de
explosão social que, entretanto, não podem ser vistas meramente em termos de
coesão social da sociedade como tal, isoladas das contradições da forma de
produção capitalista (que é produção de valor e de mais-valor).
4. O impacto das novas formas de
alienação/estranhamento na subjetividade
da classe trabalhadora
Nessa fase de
mundialização do capital, caracterizada pelo desemprego estrutural,
pela redução e precarização das condições de trabalho, evidencia-se a
existência de uma materialidade adversa aos trabalhadores, um solo social que constrange ainda mais o afloramento de
uma subjetividade autêntica, ou seja, de uma subjetividade
para-si (ver Tertulian, 1993).
Múltiplas formas de fetichizações e
reificações (transformação em coisa) poluem e permeiam o mundo do trabalho, com
repercussões enormes na vida fora do trabalho, na esfera da reprodução
societal, na qual o consumo de mercadorias, materiais ou imateriais, também
está em enorme medida estruturado pelo capital.
Dos serviços públicos
cada vez mais privatizados, até o turismo, no qual o “tempo livre” é instigado a ser gasto no consumo dos shoppings, são
enormes as evidências do domínio do
capital na vida fora do trabalho, que colocam obstáculos ao
desenvolvimento de uma subjetividade autêntica, ou seja, uma subjetividade capaz
de aspirar a uma personalidade não mais particular nem meramente reduzida a sua
“particularidade”.
A alienação/estranhamento e os novos fetichismos que
permeiam o mundo do trabalho tendem a impedir a autodeterminação da
personalidade e a multiplicidade de suas qualidades e atividades.
Nessas condições, a
subjetividade da classe é transformada em um objeto, em um “sujeito-objeto”, que funciona para a
auto-afirmação e a reprodução de uma força estranhada. O indivíduo chega a
auto-alienar suas possibilidades mais próprias, vendendo por exemplo sua força
de trabalho sob condições que lhe são impostas, ou, em outro plano,
sacrifica-se ao consumo de prestígio, “imposto
pela lei de mercado” (Tertulian, 1993).
Entretanto, é
importante salientar que a vida cotidiana não se mostra meramente como o espaço
por excelência da vida alienada, mas, ao contrário, como um campo de disputa entre a alienação e a desalienação.
Como observamos no tocante à subsunção do trabalho ao capital, nas relações
trabalho/capital, além e apesar de o trabalho “subordinar-se” ao capital, ele é
um elemento vivo, em permanente medição
de forças, gerando conflitos e oposições ao outro pólo formador da unidade que
é a relação e o processo social capitalista.
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