Um discurso sobre as ciências

Resenha da obra de Boaventura de Sousa Santos


Por Welliton Resende





Nesta obra, Boaventura nos convida "a voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz à nossa perplexidade."



O paradigma dominante


Trata-se do modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna, mas se distingue do senso comum e das chamadas humanidades (filologia, direito, literatura etc). A nova racionalidade científica também é um modelo totalitário pois nega o caráter racional a todas as outras formas de conhecimento se não forem pautados por seus princípios epistemiologicos e por suas regras metodológicas.

A ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata.  

Em decorrência da centralidade da Matemática nas ciências modernas decorrem dois efeitos:
a) conhecer significa quantificar (o que não é quantificável é irrelevante);

b)conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações ( Descartes: "dividir cada uma das dificuldades...em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver").

A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos epistemiológicos e das regras metodológicas. 

As leis da ciência moderna privilegiam o como funciona das coisas e rompe com o senso comum.  No senso comum a causa e a intenção convivem harmonicamente; na ciência a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção.


Um conhecimento baseado em leis tem como pressuposto a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro (ex, as leis de Newton). Ou seja, a ideia de mundo-máquina.

Convém ressaltar, que esse é também o horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia (o estado positivo de Comte; a sociedade industrial de Spencer; a solidariedade orgânica de Durkheim).

De acordo com a primeira vertente, por maiores que sejam as diferenças entre os fenômenos naturais e sociais é sempre possível estudar os últimos como se fossem os primeiros. Para conceber os fatos sociais como coisas (Durkheim) é necessário reduzir os fatos sociais às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis.

As ciências sociais têm um longo caminho a percorrer no sentido de se compatibilizarem com os critérios de cientificidade das ciências naturais. Eis as lacunas:

 A- não dispõe de teorias explicativas que lhes permita abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada;

B-não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e determinados;

C-não podem produzir previsões confiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire;

D-os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; e,

E- as ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se , no ato da observação, dos valores que informaram a sua prática em geral e, portanto, também, a sua prática de cientista.


A segunda vertente, por seu turno, reivindica para as ciências socais um estatuto metodológico próprio. O argumento fundamental é que a ação humana (práxis) é radicalmente subjetiva. O nosso comportamento, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato extremo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes.

A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais, ou seja, terá sempre de compreender os fenômenos sociais a partir de atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações.

A crise do paradigma dominante

1)O modelo atual baseado na ciências naturais atravessa uma profunda e irreversível crise. Como exemplo disso, temos o Princípio da Incerteza de Heisenberg (não se sabe qual o deslocamento exato feito pelas partículas, o que impede a definição da sua localização, trajeto, tempo, direção e sentido.)

Novas concepções:

"Em vez de eternidade, a história;
Em vez de determinismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização;
Em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução;
Em vez da ordem, a desordem;
Em vez da necessidade, a criatividade e o acidente".

As leis têm um caráter probabilístico, aproximativo e provisório. A simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer.

Nas demais ciências a noção de lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente substituída pelas noções de sistema, de estrutura, de modelo e, por último, pela noção de processo. O declínio da hegemonia da legalidade é concomitantemente do declínio da hegemonia da casualidade.


2)A reflexão epistemiológica versa mais sobre o conteúdo do conhecimento científico do que sobre a sua forma. O rigor ao afirmar que a personalidade do cientista destrói a personalidade da natureza. 


Houve uma espécie de "industrialização da ciência" onde esta se comprometeu com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas. Esse processo se mostrou tanto ao nível das aplicações da ciência como ao nível da organização da investigação científica.

A comunidade científica ficou estratificada, as relações de poder tornaram autoritárias e desiguais e a esmagadora maioria dos cientistas foi submetida a um processo de proletarização no interior dos laboratórios.

A investigação capital-intensiva tornou impossível o livre acesso ao equipamento, o que contribuiu para o aprofundamento do fosso, em termos de desenvolvimento científico e tecnológico, entre os países centrais e os países periféricos.

O paradigma emergente

Teses que levam ao novo paradigma:

I-Todo o conhecimento científico-cultural é científico-social
À medida em que as ciências naturais se aproximam das ciências  sociais estas aproximam-se das humanidades. O sujeito regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica.

II-Todo conhecimento é local e total
Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é  tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre o qual incide.

É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico  faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos.

No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal. O conhecimento pós-moderno é também total porque reconstitui os projetos cognitivos locais, salientando-lhes a sua exemplaridade, e por essa via transforma-os em pensamento total ilustrado.

A ciência do paradigma  emergente assume uma postura tradutora, ou seja, pode ter o seu conhecimento utilizado fora do seu contexto de origem. Mais acessível.

III-Todo o conhecimento é auto-conhecimento
A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeito empírico.

Um conhecimento objetivo, factual e rigoroso tolerava a interferência dos valores humanos ou religiosos. Foi com base nisso que se construiu a distinção dicotômica sujeito/objeto.

Parafraseando Clausewitz: "podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios". Por isso todo conhecimento científico é auto-conhecimento.

IV-Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum
A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado.

A ciência moderna construiu-se contra o senso comum que considerou superficial.

A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo. Ele tem um dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico.

Deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade.
















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